RETECENDO
Quando voltas pra mim?
Já o dissestes – não creio em ti! –
não importa.
Espero... Vem pra mim!
Não me correra bem o dia. Gostaria que alguém me dissesse por que certas manhãs já nascem negras, facas afiadas, amargas, inimigas. Ninguém a culpar por isso. Mas, eu gostaria de culpar o leite azedo, quem sabe o barulho do carro do lixo na madrugada, o disparo do alarme de carro na rua, o vinho tinto ao jantar, o espaguete com mariscos. Enfim...
Entramos na noite desarmados e prontos a reerguer os muros, tijolo por tijolo, derrubados pelo dia, e isto nos enfraquece um pouco. A aranha incansável retece a teia lesada. É o seu destino. O nosso não é diferente.
Já que até o momento nada dera certo, resolvo sair para espairecer.
O elevador está parado no meu andar. Entro e ao sair encontro o zelador à porta me aguardando - tem carro estacionado no seu box, diz ele. Desconsidero. – Deixa pra lá, digo a ele, e me dirijo ao Shopping.
Está chovendo. Não notei ao sair do apartamento. Deveria ter olhado pela janela, pois o tempo está encoberto. Volto para pegar o guarda-chuva.
Foi providencial a minha volta. Deixei a Maggye, minha gata, do lado de fora. Entramos juntas, Ela me atrapalhando os passos, enroscada em minhas pernas e ronronando feliz. Desta vez, não dormiria no hall, como quase sempre acontece. Os gatos são animais curiosos, caseiros, territorialistas, de hábitos e não gostam de mudanças. Qualquer ação que venha a mudar sua rotina os estressa.
Pego o guarda-chuva, uma echarpe, a bolsa e saio para a rua. A chuva certamente vai lavar minhas certezas e incertezas. Espero consertar os estragos causados pelo dia cansativo. Os estragos de hoje amanhã serão apenas vestígios de um dia apertado. O sol se ocupará de clarear e secar os respingos que a chuva deixou... Outro dia, outro momento, outra teia a retecer.
O Shopping, - um mundo fantástico de consumo – serve de paliativo para estresse. As vitrines estão lindas! Os vitrinistas utilizam a psicologia de vendas e as preparam com esmero. Estamos em tempos do marketing. A decoração é direcionada a corresponder às expectativas e fantasias de um público afim e, por isto, capricham nas luzes, nas cores e nos adereços. Iluminadas e bem decoradas são chamarizes apelativos para compras.
Pelos corredores do shopping, pessoas se cruzam em direções diferentes. Boa parte dos freqüentadores acorre às áreas de lazer e a procura da praça de alimentação. Deixo para depois. Antes quero ver vitrinas.
Na vitrina de calçados, as sandálias de saltos altos e finos – antigos calçados Luis XV – remetem-me à década de 1950 – “Anos Dourados”, ( namoros no portão, bailes aos sábados e aos domingos na matinê, vestidos sobre saiotes engomados, flores nos cabelos, cinturinha de vespa, e muita música de grandes orquestras). Delicados e femininos os sapatos são complementos importantes para as mulheres. Foram-se os pés calçados em tênis. Eram confortáveis, mas bastante deselegantes quando usados com roupa social. A maioria das jovens não possui gosto apurado. O bom gosto se apura com a idade, acredito. Usam qualquer coisa em moda sem critério algum.
Em frente, de forma estratégica, a loja de roupas femininas exibe peças de gosto discutível. As roupas são descartáveis, deselegantes e desestruturadas, nada têm a ver com uma confecção apurada e de bom gosto. A falta de critério na escolha certa leva as mulheres a usar peças inconciliáveis. Mas, inegavelmente, a moda atual é democrática – ricos e pobres se vestem deselegantemente iguais. Não resisto. Entro na loja e compro uma calça bag - confortável e democrática!
Na vitrina da loja masculina ao lado, eu paro encantada diante de uma bela camisa de algodão egípcio e na cor azul, da preferência do meu filho. A camisa não tem colarinho e o corte é perfeito; é descolada, moderna. Entro na loja e o vendedor, extremamente simpático, me atende com cortesia. Compro a camisa para meu yuppy. Sinto-me agora um pouco mais leve. Começo a retecer a minha teia. Comprar é tudo de bom!
Subo as escadas para o andar dos cinemas.
O filme que quero assistir é uma estreia. A fila para a compra de entrada encaracola-se no saguão. Não desisto, entro e aguardo minha vez de adquirir o ingresso. Não faço uso de minha prerrogativa em ser atendida especialmente. A jovem à minha frente olha-me por cima dos óculos e avisa: sua bolsa está aberta. -- Obrigada, respondo. Remexo a bolsa e olho; não falta nada. No programa, o nome do filme em letras menores do que o valor da entrada; estratégia de venda, com certeza! A sessão só começaria às 21h. São apenas 18h30. Para aguardar o início da sessão, farei um lanche. Oportunidade de embaralhar meus pensamentos, ver gente e deslizar meu olhar crítico sobre o comportamento das pessoas presentes. Divagar sobre possíveis situações a partir de suas performances. Se não estiverem disputando algo ou alguém, não precisam representar, mas, se estiverem disputando, a postura será outra. Aprecio este jogo!
Sigo pelos corredores rumo à praça de alimentação com a determinação de não mais parar em loja alguma. Mas, não resisto. Entro numa livraria e encontro um livro de poemas de Emile Dickinson, poetiza americana do século dezenove – a tradução, principalmente de poemas, deixa muito a desejar em razão da métrica livre, e as rimas, já claudicantes, quando as há, transformam os poemas quase sem sentido em português. Emily Dikinson, em sua enigmática literatura, criou uma forma própria de poesia, desprezando as fórmulas ou a regularidade convencional. Solteira, curtia uma paixão proibida. Isolou-se em sua casa e produziu milhares de poemas e contos que somente após sua morte foram reconhecidos e publicados. Agnóstica, não deu importância ao puritanismo da era vitoriana, tempo em que quase nada era permitido às mulheres, tudo era pecado e os conflitos e as emoções femininas sofriam restrições sociais. Aprecio a poesia de Emily Dikinson, por isso vou levá-lo na língua original.
Finalmente saio da livraria, depois de ficar por uma hora olhando títulos e autores, antes que resolva comprar mais algum livro que não terei tempo de ler. Mas, volto e peço à balconista mais um: encontrei na vitrine Florbela Espanca – poetisa maravilhosa, mulher sensível, constantemente apaixonada, o retrato fiel da alma feminina portuguesa, personificação da paixão incontida “... bíblia de iniciação amorosa, dicionário das vicissitudes da mulher, livro de horas-de-dor, exercício permanente de amor.” (Maria Lucia Dal Farra). Ao entrar no mundo de Florbela sinto a interlocução permanente com o universo masculino, razão de ser da alma da poetiza. Lendo os poemas de Florbela Espanca, sinto Portugal em minha pele, seus aromas, transporto-me à cidade de Nazaré, suas mulheres vestidas de negro, com lenços franjados a prender seus cabelos – senhoras lindas -, os pescadores voltando ao fim da tarde. Relembro a cidade do Porto e seus bares a vender iscas de bacalhau, sua gente simpática – adoram os brasileiros - e o casario antigo a beira do rio. Sentar à beira do Tejo e saborear as iscas com um copo de vinho verde é tudo de bom! Vem-me a lembrança também a encantadora Cintra, no alto da serra, e suas quintas, castelos, ladeiras, seu artesanato, souvenirs, seus... Devaneios! Não foi por acaso que Eça de Queirós escolheu Cintra para unir Pedro da Maia e Maria Monfort em seu romance “Os Maias”. É em Cintra que eles se encontram e Pedro fica irremediavelmente apaixonado pela linda Maria e.... por aí vai!
A música de um piano me atrai. Sigo em direção à música, torcendo para não encontrar amigos nem inimigos. Não teria forças nem pra um nem pra outro. Nesses momentos, um mínimo de palavras, apenas as de sobrevivência. Quero estar só, embaralhando meus pensamentos... Que coisa absurda! Lembrei-me de minha mãe que me dizia, quando eu lhe fazia alguma birra: “... se está com raiva, tira as calças e pisa em cima”. A frase me faz rir ainda hoje. É o ridículo da situação. Imaginou? Não há raiva que resista a visão de uma calça sendo pisoteada. Bendita lembrança!
No meio da praça da alimentação, compenetrado, o pianista tira “Ronda” ao piano. Não era adequada para o momento, penso eu, mas é sempre bom, é música da melhor qualidade. A música, para a maioria dos presentes, é apenas som de fundo, mas sentem falta do som quando o pianista para de tocar. A importância da música em momentos especiais como os que algumas pessoas estão vivenciando será, com certeza, marcada pela música. A música poderá fazer deste um momento inesquecível. A música é marcante em vários instantes de nossas vidas, assim como perfume e um presente especial. Carregamos estas sensações pelo resto de nossos dias.
Lembro-me com absoluta nitidez um fato importante de minha vida. Minhas amigas e eu saíamos dos bailes, na madrugada, e passávamos em frente a uma casa em cujo jardim havia rosas vermelhas, amarelas e brancas. O perfume emanado das rosas, ativado pelo sereno da madrugada, eu jamais esqueci. Toda vez que tenho rosas em minhas mãos, principalmente a vermelha, e aspiro seu perfume, retorno ao tempo vivido com a intensidade que a juventude imprime aos acontecimentos por mais insignificantes que eles sejam. Relembro os momentos e sinto as mesmas emoções daquelas madrugadas após os bailes. Daí a importância que dou ao momento que passa. Viver intensamente sem perder detalhes deixa a vida marcada por impressões de um tempo que deixará saudades. Com certeza!
Gente bonita, piadas, risos, encontros, pessoas a procura de restaurante, de amigos... Aos poucos vou me recuperando.
Já à porta do restaurante, peço ao garçom uma mesa. Ele se encaminha até um delas e, gentilmente, apresenta-me o cardápio. – Obrigada... Por gentileza, uma pizza à marguerita e uma taça de vinho tinto.
Nas mesas a minha volta, pratos cheios e decorados artisticamente me levam a pensar na distribuição de renda pífia do país e sinto-me um pouco culpada por ter tanto enquanto outros têm tão pouco.
Este estado de espírito foi conseqüência de uma mensagem que recebi no meu PC, pouco antes de sair de casa. A mensagem exibia um homem vietnamita ainda jovem, colhendo restos de comida, sobras dos pratos. Estes restos jogados nos containeres de sobras do Mac Donald’s ele os acondicionava em sacos plásticos, colocava-os na sua bicicleta e levava-os para sua aldeia. Lá chegando, a criançada já o esperava na rua da vila. Distribuía o conteúdo entre eles e levava uma parte, já previamente separada, para a sua família. Seus familiares o aguardavam sentados à mesa e abraçando o prato vazio. Ele abria o saco e distribuia os alimentos nos pratos e por último servia-se a si mesmo e todos alegres comiam sorrindo para o pai.
Assim é a vida... Uns com tanto e outros com falta de tudo.
A desigualdade social existe há milênios. Mudanças só se conseguem com muita perseverança. É uma questão de luta pelas mudanças. É um trinômio a ser perseguido: educação, ética e sobriedade. Pessoas como o vietnamita generoso do e-mail fazem a diferença. São problemas sociais e étnicos, de uma sociedade desenvolvida em castas sociais não declaradas, mas de difícil solução. O governo, fruto também dessa mesma sociedade, não possui recursos suficientes para fazer acontecer algo diferente e, quando os têm, esses recursos são desviados e consumidos pela cúpula dominante. A super população também é um problema a dificultar qualquer medida de solução a curto ou médio prazo. A que se pensar em medidas de controle da natalidade. Com esta medida em caráter de urgência, parte dos problemas será equacionada.
Aqui no Brasil, o problema da miséria está sendo combatido de forma equivocada, mas chegaremos lá. O país tem dimensões continentais e nós, o povo, vamos aprender, com o tempo, a escolher corretamente os homens para o comando. Mas, diferentemente de outros países do “terceiro mundo”, podemos diminuir essas diferenças. Num futuro próximo, haveremos de ter o discernimento suficiente para inverter o processo atual, e a Educação será priorizada. Esperança de dias melhores é o que nos cabe ter!
Pronto. Já resolvi os problemas do mundo! Agora, façamos a nossa parte. Aproveitemos a chance que a vida nos oferece e desfrutemo-la da melhor forma possível.
Uma jovem se aproxima da mesa e pede licença para sentar-se. Sorrio, indico o lugar e volto à minha pizza e ao meu vinho.
Na mesa ao lado, um casal arrulha... Falam baixo, nem os anjos os ouvem. Olhos de um mergulhados nos olhos do outro. A garota diz algo e beija lhe os dedos, ele retribui e beija-lhe os olhos, o nariz, e os dois se fundem num beijo infinito, surto de paixão. Ausência total, apenas o momento. Não são exibicionistas, não! Estão em alfa... Hummm... Muito bom! Mais amor e menos guerra.
Uma amiga que há tempos eu não via se aproxima e meu coração se alegra. Conta-me as novidades. Seu filho prestou vestibular, Fuvest, passou em quinto lugar, e vai cursar direito na São Francisco. Foi promovida na empresa onde trabalha, e está de marido novo. Sua ex sogra faleceu, seu ex sogro está sentindo-se só e lembrou-se de mim. Ótimo! Marcamos um jantar em minha casa, e um jogo de “tranca” para terminar a noite. Convido-a a me acompanhar na pizza e também ao cinema - Não posso, amiga, diz ela, meu marido me espera na loja de artigos masculinos, no andar de baixo. É uma pena! Fica para outra ocasião. Telefona antes para marcarmos, ta?
Na mesa à minha frente, solitária, uma senhora espera por alguém, uma amiga, talvez, enquanto lê uma revista. Rosto simpático, uma leve maquilagem nos olhos, cabelos brancos bem penteados, camisa de seda branca e um lenço colorido no pescoço me olha e sorri. Retribuo o sorriso. É uma atitude incomum, está feliz, e quer compartilhar com alguém, nem que seja somente com um sorriso. Aproxima-se dela um jovem, toma delicadamente sua cabeça entre as mãos e beija seus cabelos, sorrindo. Ela toma-lhe a mão e a leva ao peito. Ele se senta e chama o garçom. Estão sorrindo um para o outro. A expressão de felicidade em seu rosto é visível. Coisa boa!!! Deve ser o filho querido, deduzo!
Termino a minha pizza e continuo a tomar o meu vinho. Muito bom!
O burburinho na praça continua. O pianista levanta-se, pega suas partituras, fecha o piano e não se despede. Ninguém se dá conta. O artista que se apresenta em restaurante já conhece o público. A música os alegra, mas o artista é ignorado. Ele parece não dar importância, está acostumado.
Veio-me a lembrança certa noite em que eu e meu marido fomos a uma boate, há algum tempo atrás, onde Tito Madi, um cantor famoso na época, cantava se acompanhando ao piano. Um grupo de pessoas em uma mesa no salão continuou a falar e a rir durante a apresentação, ignorando a presença do artista. Tito Madi parou de tocar e cantar e cruzou os braços. O grupo se tocou, ficou em silêncio e ele pode, finalmente, fazer sua apresentação.
Estórias, recordações, reflexões!
Chamo o garçom e peço a ele a conta e um copo d’água com gás.
O garçom retorna com a água e a conta. Entrego a ele meu cartão de crédito e agradeço. O garçom me devolve o cartão e a nota dentro do portanotas. – Obrigada, digo novamente.
Consulto o meu relógio de pulso que assinala 20h58. Estou dentro do horário. Subo a escada rolante e me dirijo ao andar das salas de cinema.
Esturato
22/08/2009