COISAS QUE NÃO VIVI
Estava pensando hoje que, por opção ou por falta de oportunidade, deixei de fazer muitas coisas na vida. Por outro lado, creio que fiz muitas outras...
Tive uma infância muito saudável, brincando na rua, e são gratas as lembranças de uma rua de terra, que depois foi asfaltada, as brincadeiras até as nove horas da noite num tempo em que não havia televisão, as fugidas para a beira do córrego para apanhar lebistes, peixinhos pequenos parecidos com girinos que eu e meus amigos criávamos em aquários, as idas às matinées dos cinemas nos domingos à tarde, onde sempre havia um seriado para acompanhar. E havia as pipas, que chamávamos papagaios, que eu mesmo fazia, utilizando varetas de bambu, papel de seda e grude de farinha de trigo. Experiências saudosas e agradáveis que hoje não são vividas pelas crianças, que desde cedo ficam horas jogando vídeo-game e assistindo televisão.
Depois, um pouco maior, continuei a frequentar cinemas, então com mais assiduidade, procurando ver os filmes que eram exibidos em nossa cidade, às terças-feiras sempre um filme de arte, geralmente europeu, em preto-e-branco, e nos fins de semana os filmes americanos de sucesso, geralmente aventuras, comédias ou dramas comerciais.
Chegada a adolescência, foi quando hoje percebo que deixei de fazer muita coisa que talvez devesse ter feito. Ou não.
Será que é chegada a hora de eu estar refletindo sobre essas coisas como naquele texto atribuído a Jorge Luis Borges? Aquele que diz que deveria ter viajado mais, feito mais isso e aquilo, que não viajava sem um termômetro, um guarda-chuva e uma bolsa de água quente? Não chego a tanto, mas sinto que houve sim muitas coisas que não fiz, e que poderia ter feito.
No conturbado período da adolescência, minha meta era passar no vestibular. Então dediquei-me o quanto pude aos estudos, permitindo-me apenas como lazer o cinema dos fins de semana e as aulas de violão. Mas nunca farreava com os amigos, raramente ia às chamadas brincadeiras dançantes do clube da cidade, quase nunca ia a bailes. Carnaval, nunca gostei. Um pouco também porque era muito tímido. Então perdi a oportunidade de ter namorado mais, de ter tido mais relacionamentos descompromissados.
Não ia à zona do meretrício, coisa comum naquela época, não bebia, nunca fumei. Mas os amigos que eu tinha também eram mais ou menos do mesmo jeito, alguns um pouco mais atirados, descontraíam-se quando bebiam.
Eu devia ser um “chato”, percebo isso ao escrever agora. Mas na época nunca recebi queixas, e segui a vida assim até sair de casa para estudar.
No ano em que fiz o cursinho pré-vestibular, dediquei-me inteiramente aos estudos, permitindo-me apenas o cinema dos fins de semana. No máximo, participava das conversas dos colegas de pensão após o jantar, antes de começar a estudar.
Valeu a pena, pois consegui entrar na faculdade, ainda que não fosse a que eu gostaria de ter entrado. Era o curso que eu queria, Medicina, mas a faculdade era particular, eu gostaria de ter entrado na USP. Mas supri isso continuando a dedicar-me totalmente aos estudos, então morando em São Paulo.
Em São Paulo, a grande restrição era a falta de dinheiro. Deparei-me com um universo totalmente distinto daquele da cidade de interior, e que era tudo o que eu queria: cinemas exibindo os lançamentos e todo tipo de filme, inclusive os de arte, que eu aprendera a gostar nas sessões de terça-feira em minha cidade, peças de teatro de autores consagrados e com atores famosos, concertos e óperas no Teatro Municipal, museus. Na minha faculdade não havia as festas tão comuns hoje em dia. Eventualmente, no aniversário de algum colega, havia uma. E eu continuei tendo poucos amigos, mas que tinham os mesmo gostos que eu, e sempre ia a um cinema aos sábados, e guardava dinheiro durante todo o mês para poder ir ao teatro pelo menos uma vez.
Durante esse tempo, ressenti-me um pouco por não poder viajar, via meus colegas comentando de fins de semana no Guarujá, em Campos do Jordão... Aí já se delineava outra característica minha: o gosto pelas viagens!
Hoje, lembrando-me dessas coisas, surpreendo-me por não encontrar mais coisas que não vivi e gostaria de ter vivido. Ao iniciar esta crônica, imaginei que iria escrever muito sobre coisas que não fiz. E acabo vendo que não foram tantas assim, e afinal, o que fiz foi o que gostaria de ter feito, não houve nenhum prejuízo.
É uma sensação estranha essa, de ter chegado a uma idade, olhar para trás e sentir lacunas de momentos não vividos. Acredito, hoje nesse momento de maior espiritualização, que o que não fiz foi porque Deus estava lá, protegendo-me, guardando-me para o futuro, para o que eu viria a ser.
A versão espanhola da música “My way”, diz mais ou menos assim: ao olhar para trás eu posso ver minha vida inteira. Sei que estou em paz, pois a vivi à minha maneira. Cresci sem desperdícios, e consegui abraçar o mundo inteiro. Se conheci a dor, também tive compensações, e consegui vencer as decepções. Este fui eu, que me arremeti, perseguindo a sorte, mas eu vivi, sempre vivi à minha maneira!