SABOR DE GOLEADA
Com o início da partida, rabisco as minhas primeiras impressões do livro O outro pé da sereia de Mia Couto. Estou envolvida na poética da narrativa e na densidade das palavras. Do meu lado, Barbarella está toda fantasiada com camisa da seleção, bandeira do Brasil, purpurinas e trombeta... O jogo corre morno. Minha preocupação está dividida entre elaborar a leitura nas entranhas com a gestação de uma resenha e ensinar a pequena as regras do jogo, a perceber um escandeio e um impedimento...
Um a zero para o Japão. Barbarella começa a cansar... O jogo só tem sentido para os infantes enquanto está ganho. Mas a seleção brasileira empata ainda no primeiro tempo e dá um novo ânimo. Uma nova rodada de pipoca é preparada no intervalo. Jogo é assim, sempre tem um segundo tempo...
Não sou doutora nas artes futebolísticas, mas lembro-me dos meus tempos na arquibancada do Botafogo e meu coração de torcedora bate mais forte. Abandono as imagens literárias, tão fortemente marcadas no romance de Mia Couto, e me entrego à paixão nacional. Rendi-me a observação silenciosa dos primeiros e mornos jogos e agora encontro uma seleção com mais gás e disposta ao gol. Os lances são mais rápidos, a bola rola... Em minha intenção inaugural de mostrar as marcações do jogo, vejo que existem mais escanteios para a seleção brasileira. Já não preciso mostrá-los, minha discípula os sinaliza como um bandeirinha experiente, reclama do juiz, xinga como adulto, desafia o locutor, quer divididas...
Mantenho o meu placar do primeiro bolão: quatro a um (4X1). Um resultado que parecia impossível com os dois primeiros jogos. Deixo o livro e as anotações na mesa e começo a literalmente a vestir a camisa para comemorar com Barbarella os jogos mundiais de sua primeira década. Pego enfim a cerveja gelada e deixo-me ser cada jogador, estou em campo com as cores verde-amarela (ou branca).
A bola rola. Vejo a fibra dos adversários, todos correm em campo em busca de um gol. Não é o jogo de resultado, mas o jogo exacerbado das paixões. O futebol que conquista as torcidas e deixa-as enebriadas com a sensação de bola dentro.
Fim de jogo. Barbarella desce para a frente do prédio junto com a vizinha. Penduram as bandeiras na portaria, fazem coreografias e entoam o canto de campeãs. Fico à espreita na janela, olhando a juventude da vitória. Os carros passam apressados em busca de alguma comemoração, os ônibus parecem mais vivos. Tudo ganha um novo perfil na projeção mundial de nossas aptidões.
Deixo-me levar pelas paixões sem me esquecer do primeiro jogo a que assisti no Maracanã em 1986, sem ainda saber diferenciar um escandeio de um tiro de meta. Em nove minutos do primeiro tempo, o Botafogo havia feito dois gols no Atlético Mineiro. Gritos, abraços anônimos, orações, enfim a corrente que une torcedores em um único objetivo. No final do jogo, quatro a dois (4X2) para o Atlético... Numa primeira partida participei das comemorações de um jogo já ganho e da solidariedade com a dor de uma derrota. Os torcedores choravam abraçados nas arquibancadas e depois desceram com os passos lentos as rampas do estádio. Naquele dia, vesti a camisa do time e durante muitos anos assisti aos jogos do Botafogo entre os portões 11 e 13 do Maracanã ou nas arquibancadas do estádio Caio Martins em Niteroi.
Em 1989, ciente das regras do jogo, festejei o título estadual em cima do Flamengo depois de vinte e um anos de abstinência do time com um gol de Maurício (camisa 7), passe de Mazzolinha (camisa 14), sob o comando do técnico Spinosa. Não foi uma goleada, mas o primeiro campeonato é impossível esquecer. Quem é botafoguense sabe o peso das superstições, a combinação dos números da camisa, o tempo de jogo... .
Depois de tantos anos, senti o espírito oscilar nas bandeiras verde-amarelas como naquela partida quase virginal.
Brasil! Que venham as oitavas!