Esperando a nossa vez...

De repente o carro freia bruscamente, mas não há mais o que fazer, e o até então individuo oculto, invisível perante a sociedade, se torna por alguns segundos o centro das atenções, com escoriações por todo o corpo, o homem caído no solo, apenas aguarda a chegada da ambulância. O motorista envolvido no acidente, ao perceber que se trata de um “sujeito maltrapilho”, concentra-se toda a sua atenção para os possíveis danos causados ao seu carro, um belo exemplar de uns cem mil reais, liga imediatamente para o seguro, explica a situação, na sua versão, e inconformado insulta o infeliz do atropelado. Para o atropelado, infelizmente só lhe resta ouvir tudo pacientemente, com dores, naquele momento o que mais deseja é o socorro rápido, porém até naquele instante, ninguém se preocupou em chamar uma ambulância, afinal trata-se de um “ninguém”. E qual a falta que “aquilo” faria a sociedade?

A polícia chega após uns vinte minutos do ocorrido, e para a surpresa, ou não, de todos, acode primeiro o motorista, porque o que está ali deitado no chão, pode muito bem esperar a sua vez, assim como sempre fez em toda a sua vida, “esperar a sua vez”, a ambulância chega em seguida, e claro, procura atender primeiro a “vítima”, afinal foi o outro que entrou na frente do carro, o "coitado" do motorista nada pôde fazer. O engraçado é que a multidão passa, olha, pergunta o que aconteceu, e quando sabe, simplesmente vai embora, “é um sujeito qualquer”, deduzem todas as possibilidades ou probabilidades que antecederam ao fato:

- “Estava bêbado!!

- “Pode ver que estava drogado!!!

- “Está indo tarde!!!

- "Vagabundo!!!

E muito mais adjetivos que de maneira imprópria colocam, julgando–o pela aparência, os enfermeiros colocam a “vítima” dentro da ambulância que antes de o levarem para o hospital, atende um pedido do motorista, que espera ansiosamente a seguradora e um familiar para resguardar o seu precioso automóvel. A polícia, que tem mais o que fazer, também vai embora sem ao menos identificar a verdadeira vítima, enquanto isso o “culpado” mantém-se imóvel e sangrando, “esperando a sua vez”, mais alguns minutos e aparece outra ambulância, e finalmente resolvem lhe dar os primeiros socorros, contudo naquele momento quase sem forças, o homem pega firme na mão do médico e fala em tom muito baixo:

- “Doutor, o senhor poderia dizer a minha família, que onde eu estiver continuarei cuidando deles?”

- “O senhor tem família?”

- “Sim, apesar do meu traje, sou casado e pai de dois filhos e infelizmente não poderei vê-los crescer.”

Sem mais, faleceu, o médico apenas o olhou agonizando. Para quem passava por ali e o via deitado no asfalto, era apenas mais “um” que partia dessa para melhor, poucos, a não ser a sua família, sabia o verdadeiro motivo de infelizmente estar passando no lugar errado na hora errada, poucos, ou melhor, ninguém sabia, que sem ter condições de beber o seu café da manhã, veio para uma entrevista e que por sorte começaria amanhã a sua jornada, e no trajeto de volta, por não ter se alimentado direito, passou mal e foi atropelado. Poderia muito bem ter um final feliz, mas entre um homem “com valores” e outro “de valores” preferiram o “com” valores, e dessa maneira caminha a sociedade, apenas preocupados cada vez mais em TER do que SER.

Regor Illesac
Enviado por Regor Illesac em 12/09/2009
Código do texto: T1806877
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