Meu caderno
Depois de uma rotineira viagem em busca de um rotineiro e inexistente futuro, ainda tenho os olhos quentes. A beleza da luz prata que invadia o ônibus escuro, a do ipê amarelo abraçado à luminária do poste na entrada da cidade que coloria a rua morta. Nada disso abria portas para um sorriso em minha boca, era uma beleza triste, subjetiva, destas de poetas doentes que lacrimejam sobre a vida.
Sozinho num ônibus lotado, cercado com fones de ouvido, Los Hermanos cantando esquadros, tudo passando enquadrado, com essência de Frida Calo. Eu em movimento enquanto estático, cérebro quente, sangue gelado e depois na rua deserta me ponho a andar, sem saber pra onde e o que procurar, a música repetindo amarga e docemente. Os amigos escondidos ou simplesmente guardados em casa. Em casa chego como sempre, mas hoje pouco diferente, sem sorriso, sem falsidade.
Há tempos aprendi a ocultar a dor para suportá-la, guardo gota a gota, cada uma em ritmos, letras, sorrisos, beijos, comprimentos, jeito de andar e vez ou outra derramo duma só vez por um certo tempo, tirando o acúmulo, o excesso, um alívio. Deixando entornar no rosto, na solidão, num ouvido amigo ou neste meu companheiro eterno: meu caderno.