É importante viver cada instante, a vida.
Estava no estacionamento, quando percebi a aproximação de um carro: __ Bom dia. Cumprimentou o moço.
__ Bom dia. Respondi.
E saindo do carro continuou: __ Ta quente hoje, né...?
__ Sim. Falei Fechando a porta do carro.
__ Não costumo vim ao shopping sozinho, sempre tem a sapeca da Júlia me puxando pelo braço, “Papai, Papai quero bolinhas de chocolate viu...?” E tem ainda a Tereza me lembrando de travar o carro, ou pedindo para eu abrir a porta do automóvel para pegar algo que por ventura havia esquecido. Falou e deu um riso como quem puxasse pela memória.
Eu sinceramente não sabia o que responder, fiquei intacta, apenas o olhei esperando que continuasse com sua história ou simplesmente que se despedisse e seguisse adiante para as suas compras.
__ Observo que trouxe sacolas, vai ao supermercado? E antes mesmo que eu respondesse falou: __ Por favor, me seja sincera, não quero ser intransigente, ou ainda atrapalhar você, mesmo porque não nos conhecemos. Mas posso lhe acompanhar, eu também trouxe sacolas...
Pensei por uns três segundos, mas foi rápido, e então respondi: __ Claro, pode sim.
__ Obrigada, muita gentileza sua. Seus agradecimentos vinham da alma, e foi neste momento que imaginei que havia acontecido alguma coisa com sua família. Sei lá, uma separação, não quis pensar em coisa mais grave.
__ Vamos então, meu nome é Cintia e você como se chama?
__ João Victor.
E caminhamos com passos lentos, pois a cada pessoa que passava ele olhava numa admiração que eu desconfiava. A tudo mesmo ele olhava, até uma sementinha dessas vermelhas, do pau brasil, ele apanhou do chão e apalpou delicadamente na mão. Um pouco estranho, mas deixei que continuássemos a caminhar naturalmente, sem perguntas. Mas o João não se contentou com o silêncio, e mostrando os dentes perfeitos com um riso bonito falou: __ Tenho uma filha linda, cinco anos faz hoje...
__ Cinco anos...? Uma mocinha. Falei.
__ E você tem filhos? Perguntou.
__ Não, não tenho, mas pretendo, assim que me casar. Falei e ele riu.
__ Pretendentes é o que não falta, aposto. Falou respeitosamente, e eu apenas deixei que um riso tímido fluísse no canto da boca.
__ Ela terá uma festa linda hoje, pode me ajudar a comprar o material para o bolo?
__ Sim posso, mas e sua esposa por que não veio? Fiquei curiosa.
__ A Júlia amanheceu um pouco indisposta e Tereza a levou no médico.
__ Entendo, mas nada grave né?
__ Não, nada grave, probleminha de garganta, só isso.
E até chegar ao supermercado do shopping, observei que o João não parava de olhar os pais agarrados nas mãozinhas dos seus filhos, ou carregando-os no colo. Ele olhava também com grande afinco quando as esposas beijavam os seus maridos ou os maridos as esposas. Teve até um momento em que o João ao ver uma bola se distanciar do seu dono, um garotinho de uns quatro anos, agarrou a bola e levou para o menino: __ Tá aqui campeão, segura e não deixa mais ir embora... A partir daquele momento, pensei que a filhinha do João estava com um problema grave de saúde, ou sei lá ele era mesmo um pai muito afetivo, assim a ponto de amar a todas as crianças... Um pouco anormal, mas enfim.
__ Cintia, chegamos!
Fiquei anestesiada com os pensamentos, até que o João me chamou e entramos no supermercado. Seus olhos brilhavam, ele estava cada vez mais animado. Foi então que respirei fundo, deixei de lado as desconfianças, os pensamentos e disse:
__ Então João, vamos às compras? Avistei de longe as prateleiras de doce, salgados, lembrancinhas de festa infantil e começamos a encher os carrinhos.
Realmente, era um homem interessante, sua família devia mesmo ser muito feliz, em ter um pai dedicado, um esposo delicado, inteligente, e muito sensível. Que naquele dia especial, estava entusiasmado em dar uma festa para a sua filha e ajudar a esposa nas compras.
Assim, em tudo que pegava, lembrava de Julhinha: __ Ela vai adorar, tenho certeza que sim. E saltando para alcançar uns pacotinhos de confetes disse: __ Isso Cintia, é a cara da Julia, a Tereza nem vai acreditar que comprei. Riu: __Ela fica injuriada, porque a casa fica cheia de pedacinhos de papel.
__ Mas hoje é diferente, hoje é festa. Falei. __ A Júlia pode tudo, ou quase tudo. Com isso o João Victor riu e agarrou mais saquinhos de confetes, como quem diz, que a menina podia sim, tudo.
Passaram mais de duas horas e o João Victor não estava saciado, queria comprar mais e mais.
__ Acho que já tens o essencial. Falei já exausta das compras.
__ Você acha mesmo que isso basta? Olhou o carrinho após a interrogação, e eu afirmei com a cabeça.
Saindo do supermercado o João Victor me abraçou e agradeceu muito. O semblante daquele pai tão apaixonado por sua família me fez refletir durante todo o dia. Imaginei-me casada com um homem igual ao João Victor, recebendo flores antes de sair de um hospital, ou entrando em um restaurante para comemorar aniversario de casamento. Olhei até o dedo onde provavelmente o meu homem colocaria o anel de ouro que me daria de presente.
__ Ai, ai... Suspirei.
Passam-se três dias após a minha ida ao shopping, e ao levantar, escovar os dentes e ligar a TV, vejo um documentário que me apavorou.
__ “10/09/1999 - FORAGIDOS... Há informações de que momentos antes de assassinar a ex-esposa e seqüestrar a própria filha de apenas cinco anos de idade, João Victor estaria na companhia de uma mulher ainda não identificada. As gravações feitas no supermercado do shopping estão sendo estudadas por detetives da polícia militar.”
__ Meu Deus! Exclamei ao ver na tela da TV, um retrato falado com todas as minhas características. __ Meu Deus! Sentei abismada no cantinho da cama. __ Estou sendo procurada pela policia, mas eu não fiz nada, não fiz nada... Como pode!
A partir daquele momento minha vida nunca mais foi a mesma, tive que provar que não participei do crime, e o mais difícil, provar que não conhecia o João Victor, que o acompanhei no supermercado por acaso. As interrogações eram absurdas ao meu ponto de vista, visto que não sabia nada sobre o assassino: __”Por que este medo, fale para onde o seu comparsa fugiu...” Eu não tinha o que responder, apenas que não sabia de nada, assim passei um ano e sete dias na Penitenciária Feminina "Dra. Maria Cardoso de Oliveira" - Butantã, até ser levada ao terceiro julgamento: __ “Pode-se notar, facilmente, que a presunção de inocência encontra-se implícita, pois as acusações constitucionais não colocam claramente a ré culpada.”
__ Pam... Mesmo depois de 10 anos, a pancada do martelo dada pela juíza Constância Maria de Felício Filha, é meu pesadelo, mas também é minha vida. E a cada novo dia, um sentimento novo de liberdade me impulsiona a lutar.
São Paulo 10/09/2009