MEDO

 Esse fato aconteceu comigo:

"Há muitos anos, solteira ainda, eu resolvia passear vez ou outra. Tirava um mês de férias não remuneradas, escolhia um lugar e ia. E numa dessas vezes fui pra Salvador. Escolhi a cidade velha e as trezentas e tantas igrejas. Era artista plástica nessa época, e desenhava muito as igrejas, ruas e ladeiras. Certo dia, já cansada a beça de tanto andar, visitei , acho, que foi a Igreja de São Francisco, aquela que é super barroca e tem o altar principal todo foleado a ouro. Um espetáculo mesmo.
Mas o cansaço me fez procurar  lugar mais tranquilo, sem tanta exposição de beleza.
E encontrei uma parte lateral, de teto mais baixo, e com menos decoração. Quase toda branca, um branco meio velho tendendo pro ocre desgastado.
O altar não tinha adornos. Tudo mais simples. Adiante do altar, uns poucos passos, uma mesa forrada de toalha e um caixão sobre ela com uma figura dentro. Pelas paredes laterais alguns poucos santos descoloridos, mas tudo de tamanho natural.
Sentei em um dos bancos: ufaas...Descanço merecido. Botei ao lado os meus apetrechos e relaxei. Fiquei ali um tempão. Sem rezar. Sem pensar em nada.
Um verdadeiro repouso precisado. Os olhos percorriam todo o cenário simples em contraste do exeberante barroco dourado da nave principal.
Sozinha ali fiquei um tempão, quase esquecida da vida.
Os olhos já tinham visto tudo e só olhava agora vagamente, dando um tempo de sair e enfrentar o calor lá fora. Mas o entardecer já estava se aproximando, realmente era hora de voltar pra casa das amigas onde me hospedara.
Fixei o caixão, a figura imóvel lá dentro e aí percebi que não era estátua de santo. Nem era de cera. Extranho, que era então? Olhei mais detidamente e reconheci um cadaver vestido com meias roxas. Mortíssimo.E eu só com ele.

O medo, o medo... Nossa, eu estivera talvez horas sozinha com um cadaver desconhecido, e nem mais ninguém! Fui tomada de um MEDO, medo inexplicável, mas sentido como o exemplo do que é medo de verdade, medo sabido e experimentado. Sem salvação.
Conseguir pegar minhas coisas e sair dali pareceu uma velocidade em câmara lenta. Parece que um tempão maior que o tempo se arrastou até eu me encontrar lá fora sobre o chão de pedras da rua ou praça!

O sol fraco da tarde ainda me cobriu e me amparou me trazendo para a vida, para a minha própria realidade."