A CARAPUÇA

Aos poucos, vou aprendendo a calar- me diante da injúria e da crítica injusta. Venho percebendo que meu jeitão polêmico de ser, é muitas vezes, prejudicial. Na maioria das vezes, sou eu mesmo, o maior prejudicado. A vida dentro dos coletivos, tem realmente sido útil sobremaneira. Cedo ou tarde, aprenderemos a usar o dom da palavra de modo mais dulcificado, sem o peso amargo do fel, destilado pelo pensamento desorientado que chega ao aparelho fonador sem o devido filtro da razão. Ah, a razão... Melhor amiga da justiça, sempre prezando pela sensatez em cada atitude.

Dois senhores, cabelos brancos e uma jovialidade ímpar. Realmente, aquela cena foi encantadora. Talvez até digna de aplausos, não fosse um detalhe. Encontravam- se dentro de um ônibus. Um jovem deveras espaçoso, ocupava o assento que lhes era de direito. Entretanto, isso era pouco para os abalar. Inteligentes, bolaram belíssimo plano. Encomendaram ao jovem, uma linda carapuça.

Começava o diálogo, versando sobre as respectivas idades. Oitenta e três e setenta e oito, se a memória do escritor não estiver falha.

Espantoso. Sobretudo, observando a força dos dois. Braços firmes, seguravam a barra de sustentação, enquanto o motorista parecia importar- se pouco com o que transportava, desejando chegar ao seu destino, em breve tempo. Os velhinhos, deixavam no ar a carapuça. O jovem, por sua vez, não se interessava

E a conversa se seguia. Na ótica deles, já não se fazem mais jovens como antigamente. De fato, respeito nos dias de hoje, é artigo raro. Como era também a carapuça. Sob encomenda. Única. Destinada exatamente àquele jovem, que por um momento pensou em vesti- la. Analisou, entretanto, que não lhe cairia bem.

E a viagem prosseguia, pelo solo esburacado, cheia de solavancos. Firmes, os senhores teimavam em mostrar a carapuça. Astuciosamente, porém, eles apenas instigavam o garoto, com a descrição da palavra indiretamente direcionada ao mesmo.

- Sabe que é bom viajar em pé. A gente fica mais forte.

- E não é verdade? Fica até mais forte do que muita gente por aí...

Tenho certeza. Os dois são vendedores de carapuças para jovens mal educados.

- É rapaz... a juventude de hoje está difícil...

- Com certeza não chegam aos nossos pés. Se chegarem à metade da nossa idade é muito.

O ponto aproximava- se e eles teriam de descer. Não poderiam fazê- lo, sem ter vestido o menino com a carapuça.

A essa altura, o alvo dos velhinhos, já suava frio, tremia por dentro, esforçando- se por fazer descer guela a baixo as palavras, que dançavam ironicamente em sua garganta:

- Desculpem- me. Meu trajeto é muito longo, tenho uma deficiência, que no momento, os coloca em melhores condições do que eu. Parabéns pelo exemplo de saúde e força, mas infelizmente, não posso levar a carapuça. Ela não me serve.

O jovem engoliu tudo isso. Melhor ter escrito a história. Oxalá eles leiam. Desceram. O jovem seguiu seu caminho, com mais uma história no bolso. Certamente, não faltarão usuários para aquela carapuça.

Marcello Santos
Enviado por Marcello Santos em 05/09/2009
Código do texto: T1794387
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