Paiê, vamos brincar????

Muitas das coisas que havia já não há mais: grades vestem os blocos de segurança; não há mais festa junina nas quadras, não há mais moleques pulando a fogueira e se divertindo abaixo do céu do Cruzeiro estrelado.

Onde havia o campo livre que servia de quintal para a molecada que vivia nos prédios, colocaram concreto e lojas. Ocupou-se o vazio com nada.

Ando pelas ruas do Cruzeiro Novo com um olhar antigo.

Um moleque imaginário veio estar comigo e vende jornal de domingo:

“ Olha ê, o Correio!”

Estou evocando o passado, tentando buscar uma pista para o meu presente.

Certa vez, durante um ‘aperreio”, numa dessas noites escuras da alma, surtei e regressei a infância; talvez por segurança; talvez por que aqui eu me sentia completo, antes do porvir. Minha consciência veio parar nessas ruas e se escondeu nas memórias da minha infância. Agora, ando por entre as quadras, com um bloco de notas na mão e uma caneta para filmar cada sensação, para me ajudar a encontrar a razão pela qual vim pra cá durante aquela noite em que quase morri; mas temo não encontrá-la.

Revivo o que ainda lembro do surto, vejo nomes: Cobal, Tarcisio, Itambé, mas nada me ajuda a compreender o que houve; por isso vou associando o que sinto nesse momento, com as lembranças de criança.

Deixo de ser o escritor e passo a ser apenas a lembrança. Fragmentos de memórias se tornam vivos como se estivessem sendo vividos naquele instante.

Vejo a banca de doces do Seu Moisés, o velhinho que me iniciou no mundo das paçocas. A padaria que nos forneceu pães e empregos – seria o local do primeiro emprego da minha mãe, pós-divórcio. Olho pro céu e vejo a tarde caindo, meu pai indo trabalhar e os moleques todos de casa saindo, para brincar de pique-pega, pique-esconde, de brincadeiras sacanas de salada mixta e o Neguinho levantando no domingo bem cedinho e se tornando o menino que vejo querendo me vender o jornal.

“ Olha ê, o Correio!”

Quero comprar o jornal do moleque. Sorrio para o menino e lhe entrego alguns trocados, ele me dá o jornal. Pergunto se vale à pena trabalhar aos domingos quando ele poderia estar dormindo; ele responde rindo: “ se eu vender todos os jornais, compro mais três gibis”.

Onde estão os pais desse menino?

O bloco B da Quadra 803 aparece à minha frente e presencio uma das discussões entre os pais do moleque:

- Você sempre valoriza todo mundo, menos a sua família! – grita a mulher de vestido estampado e lenço amarrado à cabeça.

- Se eu não ajudá-los, quem ajudará?

- Dino, pelamordedeus, você trocou um prédio onde tínhamos uma casa de oito cômodos por um prédio onde temos que viver num quarto, banheiro e cozinha; é justo com a sua família? É justo ajudar os outros e se esquecer de quem você precisaria ajudar em primeiro lugar? Só podemos ajudar os outros quando temos condições!

- Posso trabalhar, Graça, posso conseguir tudo de novo. Tenho dois empregos, vou comprar uma casa para a gente morar e não precisaremos mais viver à custa dessas residências para porteiros.

- A questão não é essa, Dino. Quantas vezes precisaremos recomeçar porque você não teve a coragem de dizer não aos seus amigos?

- Eu sei o que é melhor para a nossa família, Graça, vai cuidar das suas coisas, pois quem ainda sustenta essa casa sou eu. Está faltando alimento na mesa? Te deixo faltar alguma coisa ou para as crianças?

- Sim, Dino, falta algo: firmeza sua como pai dessa família!

Volto a minha atenção para o menino que já vai longe. Ao fundo em algum prédio, alguém toca Raul Seixas:

“ Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante

Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”

Olho para as minhas mãos, o jornal desapareceu. Não há mais moleques vendendo jornais aos domingos no Cruzeiro.

Contudo, percebo de onde vem essa minha mania em sempre recomeçar a minha vida, nunca fazer um trabalho por completo e bem feito. Compreendo que herdei o comportamento do meu pai em meu jeito. Quantas vezes tentei ajudar todo mundo e esqueci de dar uma mão para a minha própria família? Quantas vezes dei mais valor ao quintal do vizinho? Quantas vezes larguei uma vaga em uma melhor posição no emprego para ajudar um amigo que nem lembro mais o nome?

Mas nem tudo é negativo, vejo muita coisa boa que faz parte do homem que me tornei naquele molequinho: vontade de trabalhar; correr atrás dos seus objetivos, dos seus sonhos; imaginar um mundo mais bacana mesmo vivendo em um tempo de brigas e ameaças de separação dos seus pais.

Voltei para o Cruzeiro no meu surto, pois é aqui que eu me sentia seguro; antes da separação dos meus pais. Voltei pra cá, pois foi aqui que organizei o meu intelecto rudimentar, construi a minha visão de mundo e foi a partir desse conjunto, que tudo mais se formou.

As grades em volta do prédio mostram pra mim que nada permanece o mesmo. O Cruzeiro já não é mais seguro como na minha infância.

Meu pai era um homem bom, mas era ingênuo demais em relação ao mundo; não sabia a diferença entre ser bom e ser bobinho. Seus amigos usaram e abusaram desse sentimento nobre que meu pai tinha em querer ajudar todo mundo e o velho pagou um preço alto demais por isso: perdeu a família e acabou sozinho.

Vejo então mais brigas e a separação; vejo minha mãe dizendo que vai partir e o meu mundo seguro ruindo; daí lembro que estamos em junho e é época de festas, deixo a lembrança da separação para outra crônica, ainda tenho uma última festa de alegria, antes de grande tristeza.

Meu pai prepara a quadra 803 para a maior quadrilha do Distrito Federal. Surgem voluntários de toda parte e vejo os rostos dos amigos esquecidos, dos parentes, dos meus irmãos bem pequeninos; vejo minha mãe nos servindo limonada; olho para o céu e vejo as nuvens que formam bonecos de neve. Os adultos prendem os bambus com cordas, formando uma grande muralha ao redor da quadra; as mulheres preparam as barracas e trazem as comidas e bebidas; os meninos colam as bandeirinhas.

- Vem cá, Neguinho! – diz meu velho. Ele não desconfia que quem está lá é seu filho adulto, vê apenas um menino – Escreve aí no seu caderninho: papai fez a maior fogueira de São João do mundo.

Obedeço meu pai e escrevo ainda mais: aquela festa junina começou em junho de 1984 e dura até hoje.