Meninas também soltam pipa!

Quando eu era criança, me fascinavam enormemente as pipas.

"Culpa" da minha mãe, acho, que costumava fazer pras filhas ainda mal saídas das fraldas umas pipazinhas marotas com armação de piaçava, papel comum e linha de costura, e que voavam sofrivelmente, mas nos davam grande prazer e alegria.

Na verdade, tudo que pudesse e soubesse voar, me fascinava igualmente, fossem pássaros, balões, aviõesinhos de papel, aviõesões de verdade, os foguetes da Nasa, os discos voadores nos filmes ou as singelas pipas. Mas estas últimas tinham algo de especial -- custavam pouco e a gente podia, de certo modo, controlar o voo e, por indução, sentir-se nas nuvens.

Certo, havia os aeromodelos também, mas estes sofisticados brinquedinhos estavam muito acima do meu quase inexistente poder aquisitivo.

Na rua onde eu morava, num bairro tranquilo do Rio, meninos e meninas brincavam juntos -- ora de casinha, ora de bola e pipa, ora de um pique qualquer. Pra não mencionar escalada de árvores, muros e telhados, o que me rendeu uma clavícula quebrada, mas essa é outra história.

Aprendi com os amigos e primos a fabricar minhas próprias pipas. E fazia isso com muito capricho, a ponto de dominar alguns macetes que fariam com que a dita cuja voasse desta ou daquela maneira.

Preferia as de rabiola bem comprida, porque assim ficavam menos nervosas -- seus volteios eram mais suaves, lentos e elegantes. E usava o fio cordonê número dez, forte, mas flexível o bastante pra não machucar meus pequenos e magros dedinhos.

Não me interessavam as disputas, nem as caçadas à pipa alheia. O meu barato se resumia em manter a pipa no ar e fazê-la dançar sob meus doces comandos.

Jamais usei cerol nos meus barbantes. Fugia como pudesse das ameaças que acabavam invariavelmente rolando. Mas, quando algum fio cortante feito faca atingia o seu intento e me separava da minha pipa, apesar de ficar triste e frustrada, acabava deixando pra lá, até porque não tinha outro remédio... e começava tudo de novo com outra pacientemente fabricada.

Gostava de fazê-las subir rapidamente e, uma vez lá no alto, o fio tenso feito corda de violão, coreografar os mais alegres balés aéreos, com súbitas debicadas mergulhadoras para, em seguida, retomar as alturas com sinuosa graça e leveza.

Eu me mudei pra Brasília na virada da infância pra adolescência e, apesar da cidade ser perfeita pra essa brincadeira, era muito raro ver uma pipa no céu -- ou em qualquer outro lugar. Meus interesses, então, se voltaram pro violão e pro rock'n'roll, pros programas feitos em bando, pras festas e namoricos, enfim, pras coisas que os adolescentes de todos os tempos gostam de fazer... e as velhas brincadeiras acabaram ficando meio esquecidas.

O tempo passou, fui fazer faculdade e fiz novos amigos -- muitos vindos de São Paulo e de Goiás -- e qual não foi minha alegria e contentamento quando alguns deles disseram também ter sido aficcionados das pipas, a ponto de fabricar as suas próprias. Claro que logo partimos da conversa para a ação -- fizemos algumas lindas (imagina pipa feita por estudante de arquitetura...), com longas e caprichadas rabiolas, e fomos em bando pro parque da cidade inaugurar nossos brinquedos.

Perdoo o machismo dos meus amigos, que duvidaram que uma mulher pudesse empinar uma pipa com destreza -- assim como dirigir automóveis, mas isso também é outra conversa --, e perdoo tanto mais porque foi uma sensação pra lá de agradável o fato de, além de ter o incomparável prazer da brincadeira, vê-los boquiabertos quando comecei minha função.

É como andar de bicicleta ou nadar -- a gente não esquece.

E entusiasmadíssima com o prazer retomado depois de tanto tempo, caprichei como nunca nas debicadas e volteios, na alegre coreografia aérea, me sentia como se tivesse dez anos de idade novamente.

Confesso que até hoje, quando vejo um desses brinquedinhos se rebolando todo contente lá no alto, sinto uma comichão nos dedos e nos neurônios da área do cérebro reservada aos prazeres incomparáveis.

Um dia ainda vou tomar coragem. Vou providenciar um desses brinquedinhos, ir lá pro meio da quadra e, me lixando pro que possam pensar de uma "senhôra" grisalha se comportando feito criança, vou empiná-la com tudo a que tenho direito. E terei certeza de que a minha alma de "Ícara" estará lá no alto, junto com ela, babando de gosto e prazer. E sem derreter as asas...

Maria Iaci
Enviado por Maria Iaci em 04/09/2009
Reeditado em 28/03/2010
Código do texto: T1792285
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