O Cruzeiro Novo do Centro Oeste

O sol se põe entre os blocos do Cruzeiro. Tudo parece um sonho com recordações da minha infância. As cores do sol refletindo no concreto dos prédios, os passarinhos em cantoria; e eu presente em frente ao edifício onde me tornei gente; mas não é lembrança, estou adulto e ao lado da minha esposa que não compreende o meu fascínio por aquele lugar, nem poderia, ela não cresceu ali, não percebeu sua primeira visão de mundo entre aqueles blocos; Brasília para ela tem um outro significado, o Cruzeiro tem gosto de moeda, de nome de grupo de estrelas, de qualquer coisa além de berço, cidade de infância de cronista vagamundo.

Cada um com a sua Itabira, com o seu Coordisburgo; eu tenho a minha Parságada e ela se chama Cruzeiro Novo, uma pequena cidade satélite em algum lugar do avião que é Brasília.

Meu pai foi um desses “Paraíbas que se tornaram Cadangos”. Cadango é toda gente que veio construir Brasília, incluindo todos os nordestinos que ali são chamados de “Paraíba”. Meu pai na verdade já encontrou Brasília feita, mas gostava de dizer que ajudou a fazer o lugar, qualquer coisa mais interessante do que ser apenas um porteiro-zelador num daqueles tantos blocos construídos para alojar as famílias dos militares que moravam na capital do Brasil. Tenho a quem puxar quando o assunto é inventar estórias...

- Aqui é mesmo seguro? – pergunta Auri, está preocupada. Grades revestem os blocos que eram nus nos meus tempos de infância. Pichações estão no lugar dos cartazes de “Diretas Já” que proliferavam pela Brasília dos anos 80.

- Claro! – respondo, sem muita certeza. As coisas mudam, estamos viajando pelo Brasil e a segurança é uma das nossas primeiras prioridades; mas me ofendo com a pergunta e depois mais ainda com a segunda:

- Esse lugar parece uma Cohab pra mim.

Decido falar, contar pra ela sobre o que eu estava sentindo, qualquer coisa, qualquer papo, que faça ela não continuar a me lembrar que aquele lugar não é mais mágico. Eu preciso daquela magia, preciso sentir que ainda há magia por aquelas quadras; sim, o Cruzeiro não é feito de ruas e sim de Quadras com dois blocos ou mais de quatro andares cada. Os blocos parecem idênticos mais são diferenciados em Blocos do exército, da marinha e da aeronáutica; sendo os primeiros, os blocos mais pobrezinhos, sem elevadores e cuja casa do porteiro não passa de um quarto com banheiro e conzinha. Não que não se more bem num cubículo, mas não éramos um família pequena: havia minha mãe, meu pai e quatro crianças; imagine esse povo todo dentro de um quartinho. Já havíamos morado em uma casa maior, num bloco da aeronáutica uma vez, onde a casa do porteiro era gigante, tinha vários cômodos; mas um dia, meu pai chegou em casa e disse que teríamos que voltar a morar num Bloco do exército novamente; um amigo acabara de trazer sua família do nordeste e eles eram em dez; como nós éramos apenas em seis, poderíamos trocar de blocos e morar numa casa menor.

Minha mãe quase enlouqueceu com a troca; mas ao invés do surto, optou pelo divórcio; mas isso é outra estória. Espanto as más lembranças como se fossem moscas e voltei ao olhar mágico de quem voltou pra casa.

Não tive tempo de me despedir do Cruzeiro. Saí daqui muito rápido, levado pelos ventos das decisões dos adultos; e além dos toques e retoques dos últimos 20 anos; o adulto vira menino e vê o pai se despedindo, indo para o segundo emprego. Só ali, me dou conta, do quanto o meu velho trabalhava para sustentar a família.

Falo, falo, falo. Auri continua a me ouvir. Deixo ela filmando a cena, onde um adulto corre feito menino e se despede do pai que olha o filho adulto e diz: cuida da casa até eu voltar!

Eu sorrio, mal vejo o rosto do Seu Dino, o sol sombreia o seu corpo, há uma aura dourada ao seu redor; a bicicleta é de prata e reflete os raios do sol que ofuscam a minha retina.

- Volta logo! – falo e dou um longo abraço em meu velho. Não tornarei a vê-lo. Volto para o Bloco e vejo que minha mãe me olha e sorri, já sabia que o que o filho ia ser quando crescesse. Pisco pra ela, ela pisca de volta e desaparece; no lugar vejo a minha mulher sorrindo.

- Vamos viajante! – diz ela. Sim, eu vou, mas antes me deixa recriar mais um pouco as minhas memórias. Sim, são memórias inventadas, pois nunca somos imparciais com as nossas próprias lembranças. Nada no passado é exatamente igual a como se conta. Eu havia esquecido delas; por isso retornei ao Cruzeiro; voltei em busca dessas Crônicas e reencontrei o moleque que fui sendo criado, se transformando em mim.