Descalço no inverno
 
          O inverno, este ano, veio mesmo para valer e, a esta altura, quando já se encaminha para seu final, o frio acontece só à noite. E é justamente nesses momentos que sinto de maneira mais severa os efeitos de ares resfriados. Sou notívago e, conforme a noite vai se evoluindo em madrugada, os meus pés quarenta e quatro vão ficando cada vez mais e mais congelados. Deve ser efeito da idade porque, antigamente, eu não dava muita pelota para nada disso. De qualquer forma, resolvi capitular e fazer algo horrível, que é colocar meias antes de deitar. Odeio dormir de meias, além de ser absolutamente antiestético porque só durmo de cueca. Cueca e meias, realmente, é algo bizarro. Isso sem contar que, durante aquelas idas e vindas noturnas, acabo pondo meu roupão e calço as sandálias de dedo. Nossa! Nem Frankstein de maiô seria tão grotesco.

          Esta madrugada, contudo, lembrei-me que tenho um par de meias de lã. Elas são novinhas porque nunca as usei. Ganhei de alguém, não lembro quem, assim como não lembrava onde as tais meias estariam. Alguém dirá que só poderiam estar com outras meias, justamente na gaveta própria para meias. Isso seria uma verdade se as gavetas de roupas não fossem as minhas. Continuo, até hoje, com aquele estereótipo do solteirão relaxado. Aqui tudo é enfiado em algum canto; e não guardado.


          Pois bem, considerando que fiquei, de repente, atraído pela idéia de usar as tais meias de lã, saí madrugada adentro em seu encalço. Abri a primeira gaveta da cômoda e lá encontrei muitas coisas interessantes. Cuecas já puídas, que eu guardo não sei porque; cuecas ainda na embalagem, mas que jamais serão usadas porque comprei do tamanho errado; e, cuecas de uso cotidiano, também. Arriscaria batizar a dita gaveta como sendo a das cuecas, caso ali não existissem, além disso, suspensórios, prendedores de gravata e algumas camisetas regata. Ah!... Achei dois isqueiros, um alicate de cortar fios e R$ 1,32 em moedas. O que tudo isso fazia ali, não tenho a menor idéia.


          Parti para minha busca nas demais gavetas, mas não tive sucesso em encontrar as meias de lã. Aliás, não encontrei meia nenhuma. Geralmente não calço meias e, como o frio chegou, tenho a impressão de que usei os poucos pares que tenho e que, agora, fossilizam mansamente em algum local esquecido, longe do cesto de roupas para lavar. Notei, então, que a dimensão de minha necessidade pelas tais meias de lã era bem maior do que o imaginado. Deu-meu um certo desespero.


          Lembrei-me, contudo, que no guarda-roupa, por trás de camisas e ternos dispostos nos cabides, existe uma sacolona de plástico que sempre via por lá, mas cujo conteúdo não me recordava. Pensei com meus botões que, provavelmente, em algum dia de raro bom senso, eu deveria ter separado roupas que não pretendia mais usar e lá, certamente, estariam minhas meias de lã, até então, destinadas ao eterno desprezo. Frustrei-me porque, ao vasculhar a enigmática sacola acabei encontrando aquele lote de roupas que, um dia, eu jurei tivesse sido perdido na lavanderia de que me valia tempos atrás. Ai! Que remorso! Xinguei tanto a japonesa... Coitada!


          Acabei revirando todos os cantos, maleiros, portas e gavetas e, no final, o saldo foi até que positivo. Encontrei um carregador de celular, as fotos do meu segundo casamento, cinco fitas cassete com filmes de sacanagem, uma caixa de charutos ressequidos e outras coisas de grande importância. Só que, por azar, não encontrei as meias de lã. 


          Fui dormir com os pés descalços. Mesmo assim, o que me confortou foi que não sou de todo um pé-frio porque, ao menos, tenho um belo e quente cobertor de orelhas.