A Pipa Amarela
As recordações surgem aos poucos em proporção que o tempo vai mudando: o vento soprando forte, as nuvens brincando num céu azulão, os pássaros em vôos rasantes anunciando uma estação que chegou.
É o tempo das pipas. Lembro que a criançada ficava excitada, planejava cuidadosamente a cor, o modelo, e os desenhos que teriam suas pipas. A linha Zero, o cerol preparado na calçada de casa, as trocas de informações sobre o moleque, aquele que tinha mão boa para fabricar ou empinar pipa... Assim era o mês de agosto, almejado e calorosamente recebido.
Parecia que todos planejavam a hora de começar a empinar. O céu ficava colorido. Era pipa de todas as cores, formatos e tamanhos. Havia aquelas que iam tão alto, mas tão alto que para enxergá-las precisávamos encolher os olhos, e colocar as mãos sobre os mesmos para divisar algumas coisas tremulando e muitas das vezes não conseguíamos nem identificar a cor.
Também havia uma ‘verdade’ passada de boca em boca: O mês de agosto era o mês das doenças. Essa era a época que as crianças adoeciam, passando de uma para outras ‘pestes’ que o ‘mês dos ventos’ trazia. Motivo: as pipas eram os instrumentos de transmissão. Não era elas que subiam contaminando-se com os ventos e passavam para os pequeninos os males que havia no ar? Muitas mães não deixavam seus filhos brincarem, e muitos nem podiam chegar perto de um menino que tinha acabado de puxar sua pipa para baixo.
Ainda posso ver a hora dos ‘cortes’, dos ‘pegas’, das sacudidelas de braço que faziam as pipas dançar de uma forma ímpar. Vejo os ‘mergulhos’das pipas como de um pássaro indo ao encontro da sua presa. Vejo as perseguições à pipa-vítima; a que ficava ‘suru’ que mais parecia um pássaro voando apenas com uma asa. Vejo a que foi ‘aniquilada’; por um momento parece que está voando depois vai sendo levada pelo vento e cai num lugar qualquer. Enquanto isso, olhos infantis e até de marmanjos acompanhavam seu trajeto tentando adivinhar o lugar da ‘pousada’. E depois era perna-pra-que-te quero, quem fosse mais esperto, mais rápido e menos medroso conseguia seu troféu. Muitas vezes tinham que pular muros, enfrentar cachorros brabos, gansos que corriam atrás das ‘pernas de varetas’ dos moleques, e que com seus bicos cheios de serras bicavam pra valer. A alegria era geral, e havia sempre uma torcida dividida. Às vezes até terminava em briga, pois quando duas mãos ao mesmo tempo pegavam a ‘vítima’, nenhum dos dois queria abrir mão e aí era um salve-se-quem-puder, ou melhor, dizer: vença-quem-puder. E o coitado do troféu ficava irreconhecível.
Essa brincadeira era exclusivamente dos meninos, mas numa casa onde havia seis meninas curiosas e inteligentes, foi questão de tempo o encaixamento no meio masculino. Primeira veio a ‘chaloupa’, esse era o nome que dávamos para uma imitação grotesca da pipa. Ela era feita de papel de caderno, dobrada nas laterais, uma linha unia as duas laterais dobradas fazendo assim uma ponte onde amarrávamos a linha para empinar. O rabo era feito de uma tira de papel cortado de forma a parecer um rabo de porco enroscado ou então cortávamos várias tiras de papel e colocávamos numa linha pequena, pois só assim a ‘chaloupa ‘ conseguia subir alguns poucos metros, mas para nós já era o começo de uma aventura. Ficava mais ou menos assim:
Achávamos o máximo. Era o início de um novo caminhar num mundo onde menina não podia entrar. Naquela rua, quebramos esse tabu. Aprendemos a montar o ‘esqueleto’ da pipa, usávamos vara da folha do coqueiro, a cortar e colar a folha de papel de seda, a fazer o cerol, embora nossos pais não deixassem que usássemos aquela mistura de cola com vidro triturado. Diziam que era perigoso e tinham razão.
Daí foi um passo para chegarmos a empinar ‘papagaio’. Esse era o nome mais usado naquela época, e podíamos desafiar qualquer guri, sem medo algum.
Ah! A primeira pipa. Lembro até hoje, da escolha da cor, da quantidade excessiva de folha que compramos porque queríamos que ela fosse a mais bonita, a mais chamativa, a mais perfeita. Erramos pra caramba, mas depois de muitas tentativas, descobrimos como entrar na ‘linha do trem’.
A cor escolhida foi a amarela. Não porque tivéssemos premeditadamente determinado que fosse essa, mas quando chegamos à 'venda'- uma promessa de mercearia- do Sr. Antonio, só havia cores masculinas: Azul, preto, verde, roxo. E nós éramos meninas! Só restaram duas opções: branca ou amarela. Branco para um ‘papagaio’ só se fosse juntando a outras cores. O jeito foi ‘aceitarmos’ o amarelão. E arrasamos!
Por essa época aprendemos a jogar espeto, pião, bola de gude e fazer carreta com latas de leite vazias. Brinquedos típicos da gurizada, mas que adentramos e fomos aceitas como mais umas companheiras de brincadeira. Sem deixarmos os brinquedos e brincadeiras de meninas aprendemos a compartilhar e usufruir dum espaço que antes não tínhamos acesso.
Essa época se foi, hoje somos todos adultos entrando numa fase aonde as limitações vão aparecendo, o cansaço e a insônia são mais presentes, as dores nas articulações já dão sinal de vida e a vista vai ficando inútil. Mas as lembranças... Ah, essas lembranças nunca se apartam, nem se perdem no espaço do tempo, porque elas nasceram nas alturas, num lugar qualquer movido pelo vento e que se esconde na esquina de um tempo.
02/09/2009 14:35