Diante a Morte

Os pensamentos que aquele homem experimentou, diante da morte que se aproximava por sua decisão, eram terrivelmente tumultuados.

Aborrecido com a vida em si, já não ligava mais para o mundo que o cercava. Não tinha doença terminal; a família sempre foi companheira. Muito amiga e solidária com o já velho homem que gostava de ler no parque próximo.

O primeiro local que pensou para por termo à vida foi ali. Desistiu tão logo viu as crianças brincando. Um tiro faz muito barulho. Alguma criança iria ver, seria um choque.

Fechou o livro que fingia ler, enquanto preparava mentalmente a famosa carta do suicida, quando este a faz. Ninguém era culpado, de nenhuma forma não havia pessoa ou pessoas que o levassem ao gesto extremo. Doaria todos os seus órgãos que sobrassem do estrago do tiro. Resolveu que hoje seria o seu dia, que encerraria a passagem pela terra já completamente sem graça.

Caminhou lentamente, os pensamentos mais negros cada vez tomando conta da sua mente. Sim, a arma era boa. Não iria falhar no momento exato. Dizem que feito o disparo, ainda que no coração, estraçalhando os ventrículos principalmente, a morte não é imediata. Ele sabia disso. Tinha um medo. Medo terrível de ainda ficar consciente depois do disparo, e arrependimento de tal gesto. E se ele quisesse viver? De nada mais adiantava, a morte era certa. Este fato deve piorar muito a angústia de quem vai matar-se.

Chegando a casa, tomou um banho ligeiro. Não queria ser lavado por outrem, sem saber que isso aconteceria na autópsia. Examinou a pistola e ficou olhando a máquina de aço, negra, feia, atemorizante.

A carta, pensou. Não a redigira. Só de bermudas, começou a despedida. Interessante, a mão não tremia.

Súbito, um barulho infernal na rua. Choque de carros, gritos, desespero. Olhou o que se passava da janela. Quando viu os ferros retorcidos, lembrou-se do que estava para fazer. Abriu a porta correndo, os dois automóveis estavam amassados e o cheiro de gasolina era forte. Olhou o chão. Gasolina por toda parte, e uma criança presa nas ferragens gritava. Ele gritou mais alto, pedindo aos porteiros dos prédios próximos que usassem as mangueiras de lavar calçadas, proibidas mas ainda usadas, e dessem um banho longo nos automóveis e na rua. O perigo de incêndio era grande. Imediatamente a água jorrou pelos dois automóveis.

O menino que berrava, conforme ele pode constatar, aparentemente estava só com um corte na testa. Sem muito esforço, ele o retirou e levou para a calçada. Parecia simples, só o sangue assustava. Cortes na testa costumam sangrar muito. Rua cheia, ninguém morto e médicos que moravam nas proximidades já examinavam os outros feridos, aguardando a ambulância dos Bombeiros. Uma senhora, de acordo com um médico, estava com a costela quebrada.

O barulho não tinha sido tão grande assim, e os ferros retorcidos só foram visto pelo escritor da última carta, que logo voltou a casa, queimou-a e guardou a arma.

Ele hoje é monge capuchinho. Segundo me disse seu superior, já convenceu muitos e muitos que estão desesperados, assim como um dia ele esteve, a procurarem ajuda, além da que ele mesmo fornece com eficácia e ardor.

Anda feliz, barbado, com suas mãos fortes e santificadas.

Jorge Cortás Sader Filho
Enviado por Jorge Cortás Sader Filho em 02/09/2009
Reeditado em 15/09/2009
Código do texto: T1788325
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