O pé do defunto

José passava por um lugar desconhecido, uma trilha no meio da roça. De repente viu mais adiante um velhinho agachado, juntando mandiocas. Atento ao que fazia e certamente já meio surdo, nem percebeu que sua mulher, surgida por trás de umas moitas, aproximava-se pé ante pé. A velha vinha curvada, carregando alguma coisa debaixo do braço. Ao chegar bem perto dele, levantou com as duas mãos o toco de lenha e acertou-lhe uma cacetada na cabeça. O homem não teve tempo de gemer e caiu.

José quis correr para socorrê-lo, mas seus pés pareciam grudados no chão. Não se ouvia nada além do barulho das folhas balançando ao vento.

Depois de esconder o toco de lenha, a mulher voltou para junto do velho que continuava estendido, de olhos esbugalhados. Puxando-o pelos braços, pôs-se a arrastá-lo.

A curiosidade de José foi tão grande que ele não pôde deixar de segui-la. Chegando a uma casa, ela entrou pela porta dos fundos. José, então, ficou espiando pela janela.

De onde estava, pôde ver a velha ajoelhada no chão da cozinha movimentando um machado, executando a difícil tarefa de picar o defunto. Depois levantou-se, pegou um tabuleiro e passou a colocar nele os pedaços do homem. Carregando com dificuldade esse tabuleiro, ela sumiu para outro lado, arrastando os chinelos.

Inconformado, José pulou a janela e foi entrando devagarzinho pela casa. Escondido atrás de uma cortina desbotada que separava a sala da cozinha pôde enxergar tudo novamente. Diante do fogão de lenha, a mulher colocava o tabuleiro no forno.

Quando quis fechar a portinhola, viu que um dos pés do homem a impedia. Nervosa, empurrava o pé para dentro, mas nada conseguia, ele voltava à posição original e a portinha não se fechava.

José foi ficando com ódio e resolveu dar uma lição na malvada. Enrolado como estava, começou a fazer Uh!...Uuh!...Uuh!...

Surtiu efeito. Ao escutar o barulho, a mulher agitou-se e se pôs a empurrar com mais força o pé para dentro do forno, enquanto resmungava: “cala a boca, desgraçado”, pensando ser o marido quem reclamava da dolorosa operação.

Entusiasmado com o resultado, José foi aumentando o tom dos seus uus até que ficaram tão altos que me acordaram.

Balançando braços e pernas, com a cabeça debaixo do lençol, ele não parava de gritar. Tive que sacudi-lo para que deixasse de ser assombração e voltasse à realidade.

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Foi uma pena, porque ficamos sem saber o desfecho da história.

Teria sido a velha castigada?

Por que será que ela matou o marido daquela forma tão cruel?

E José, por que será que foi ter logo um pesadelo desses?...

(1989)