Naquele tempo

É bandeirinha, pique pega, pular carniça, soltar pipa ou jogar bola na rua de paralelepípedos, calçamento irregular que volta e meia deixava algum dedão sem unha e ou destroncado. O tempo corria devagar e até a nossa pressa, me parece hoje, corria em câmera lenta. Empurrar o carrinho de rolimã ladeira acima e despencar ladeira abaixo, até capotar ou perder embalo e parar, descer e começar tudo de novo. Brincar de bandeirinha reunia meninos e meninas. E a rua era pródiga em meninos e meninas. Quando havia campeonato de futebol de botões, elas estavam lá, as crianças, torcendo, gritando, agitando, colorindo. Ninguém sabia o que era obesidade mórbida. A vida era uma festa e não havia tempo ruim que nos impedisse de brincar; nem vento, nem chuva. As casas não tinham cadeados e grades impedindo nossa entrada porta a dentro e porta a fora numa correria que não deixava as mães em polvorosa, com medo de tombos ou irritadas com o barulho. As mães eram indulgentes, sábias por intuição. Machucados eram lavados com água e sabão, nada de penicilina; resfriado era curado com chá de capim santo. Mal criação? Nem pensar. Naquele tempo o respeito era sagrado.Caraca, a gente não era obrigada a fazer judô, inglês, dança, nem passar dez horas estudando pra ser PHD em frustrações e pra juntar dinheiro pra pagar o psicólogo que vai nos sugerir um modo de vida mais lúdico. Naquele tempo não tinha celular pras meninas marcarem a festa de batizado das bonecas. Era na base do bilhetinho ou, no máximo através daqueles telefones feitos com duas latas e um imenso fio de nylon (se chic) ou barbante (se brega). Quem lembra? A gente tinha tempo para exercer nossa principal atividade: ser feliz. E exercitar nosso direito inalienável de ser criança. E foram pouquíssimos os de minha época e rua que tiveram algum transtorno emocional. Não sei de nenhum que tenha se tornado um homicida. Sobrevivemos, mesmo sem cinto de segurança, sem air bag, sem freios abs. Não tenho um dos amigos de infância que tenha empunhado uma arma para se suicidar ou que tenha se entupido de tranqüilizantes para dormir ou que tenha surrado ou renegado pai e mãe. Teve um que deu uns piparotes na mulher mas jura que ela mereceu e, assim mesmo, foi só com o nó dos dedos no quengo. Coisa leve (segundo ele) Gente, o dia tinha vinte e quatro horas mesmo. Casa, a melhor era sempre a da vizinha, principalmente se essa vizinha fosse a D Áurea, a casa da rua com mais crianças por metro quadrado. Era o quartel general da criançada, era o campo neutro da rua. Na casa da D Áurea não havia lugar pra desarmonias, desde que, claro, não ousássemos colocar nossos pés na sua sala de visitas. Nos armários de roupas podia. Lembro bem que foi a primeira casa da rua a ter televisão e a criançada invadia mesmo. É um grande barato lembrar aquele monte de cadeiras encostadinhas,fazendo um grande banco, pra poder caber mais crianças sentadas . Mas não cabiam todas acomodadas ali e o jeito era ir para o único espaço possível: embaixo da mesa. Não tinha pipoca, mas quem se importava? A televisão era apenas uma alternativa mas não uma opção. O gostoso era a rua enquanto as mães conversavam nas varandas, à noite e os pais ficavam em algum quintal, jogando baralho, fumando Saratoga ou Continental sem filtro ou Lincon, tomando uma -várias- brhama da antártica, casco escuro. Naquele tempo o tempo era palpável, naquele tempo a criançada corria pra ouvir Jerônimo o herói do sertão, na Rádio Nacional e os homens corriam dos trabalhos para casa pra chegar em tempo de ouvir a secular novela O direito de nascer; naquele tempo não tinha goiabada TIPO cascão. Era goiabada cascão mesmo; naquele tempo ser normalista era o must, médico era um semideus. A única coisa que não mudou desde aquele tempo foram os políticos. Continuam os mesmos de sempre, até nos discursos. Nem naquele tempo tudo era perfeito. E aos mais jovens, que talvez riam veladamente desse texto, fica o alerta. Garanto, sem medo de errar que em algum dia, deixarão registrado, sei lá em que, a frase: "Ah! Naquele tempo"