As ilhas que somos
Às 4h da manhã levantei-me e desci à cozinha. Fiz busca frustrada por um medicamento, qual fosse, para a garganta. Os que encontrei estavam todos com o prazo de validade há muito vencido. Frustrei-me em ter às mãos frasco de xarope tão bem conservado, mas tão impróprio para uso. O motivo já foi dado. Tudo era um problema de tempo, para simplificar a questão. Mas em um hospital o que se teria era a constatação da falta de organização. De qualquer forma, estava em minha casa, portanto, abandonemos essa perfeição administrativa tão falsamente vendida pelas empresas.
Errei em pensar que o outro xarope que encontrei fosse indicado para a circunstância enferma vivida por minha garganta. Meu erro grave e inocente fora fazer uso de medicação e somente depois verificar na internet as indicações dos princípios ativos informados no rótulo do frasco. Sim, a caixa fora para o lixo e com ela a tão necessária bula. Quem o fez, não posso afirmar ao certo. Pode até ter sido eu. Mas isto é irrelevante.
Em tempos de banda-larga, o horário não é necessariamente desânimo para uma pesquisa na rede mundial. E não demorou que eu constatasse meu engano. O remédio que fiz uso é indicado para alergia, entre outros problemas, o que me deu a certeza que minha mãe é quem o utiliza. O conforto foi saber que a droga em questão também serve para bursite, que é um processo inflamatório, salvo engano. Bom, mas o que se iniciava em minha garganta era exatamente isto. Fui dormir com o propósito de logo pela manhã comprar a medicação mais adequada. E eu já sabia em qual farmácia o faria.
Antes de retornar à cama, cobri meu cão com um cobertor. Era noite de frio. Ele estava na sala, no espaço que mais lhe agrada em um dos sofás. Subi, e já no quarto vesti uma blusa de lã. Debaixo do cobertor, luz apagada, percebi que o cãozinho viera buscar minha companhia. Dormi. Eu me levantaria às 7h do mesmo dia, caso não utilizasse as opções do celular que me ofertam mais minutos na cama. São dez a mais, e acho que não posso escolher. A função tem apelido e não a condenemos, afinal é útil e foi ótima sacada das fábricas de celular. E, em verdade, desconfio seriamente que é possível configurar a duração da soneca como se queira.
Não sei você, mas sempre que adoeço, logo que acordo e me levanto, tenho sincera impressão de melhora. Faço até uso do engano da cura, para depois ver que não é bem assim. Mas desta vez, se não houve a cura, deu-se a melhora, que muitas vezes pode ser enganada como passo para o fim da enfermidade.
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Tomei meu banho. Fiz a minha barba, e o resultado na pele me agradou. Não, o ânimo era pouco. Eu queria mesmo era ficar em casa. Ainda chovia e frio forte chegara no dia anterior. Tomei meu desayuno e quase nada dele foi para o cão. Preparei as refeições para o dia. Eu as levo em minha sofrida mochila. Isto é para aliviar meu bolso, bem como fazer crescer os músculos que sofrem cargas durante a semana. Quem freqüenta academia sabe do que falo. Quem entende do assunto, também o sabe.
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Fazia frio intenso para um país tropical. Chovia. As pessoas seguiam como sempre, ilhadas. As exceções estão por aí. Eu não sou uma delas. Minha ilha de emoções estava fortemente protegida por exército medroso.
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Nesses tempos de nova gripe, o transporte público é risco inevitável. Você nota todo o desconforto dos veículos que transportam inúmeros corpos, sobretudo quando está deveras cansado e estressado. No seu carro, possivelmente está mais protegido de um contato indesejado com alguém infectado pela nova doença. Quanto a isso, não restam dúvidas. Os problemas são outros, apenas. Enfim, viver na civilização tem preço, uma escritora mencionou. Às vezes, pode ser o simples e último contágio.
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Tinha mochila pesada nas costas, e não nego preocupação com tal peso, mas que não me lembro como se calcula o limite em relação ao peso do meu corpo, debilitado pelo cansaço, que em nada tem a ver com o retorno das férias. Em uma das mãos segurava a sacola com material de trabalho que usaria nestas primeiras horas desta sexta-feira gripada. Na outra, enorme paráguas preto que não entreguei ao amigo, conforme missão a mim confiada. Esse cansaço pede a companhia do estresse para habitar-me. O prejuízo fica todo comigo, calculo. Mas é possível fazer reflexão. Vai ver o cansaço que ir para outro corpo. Tem pressa e pede reforço a fim de me convencer em respeitar meus limites. Eu me resigno e lhes digo que sigo aprendendo. Em minha ilha, sou rei que obedece.
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No vagão do metrô, aquele que adentrei, todos os assentos estavam ocupados por diversas ilhas. A soma de todos os exércitos de cada ilha resulta na constante Guerra do Medo. Essa que nos faz tão agressivos e arrogantes uns com os outros. Guerra, cujo único vencedor é o medo, que não é o macro da questão. Esse desamor que cada um tem por si resulta neste nosso comportamento belicoso. A paz com o outro começa pela paz consigo. Enquanto isso, levantaremos nossas armas, inconformados com o que somos. O jeito é essa nossa arrogância, só assim para não nos sentirmos tão inferior ao outro. E, curioso, é a reciprocidade no comportamento. Enquanto isso, lancemos mão de paliativos. Compremos por aí. Façamos nossas dívidas com as operadoras de cartão de crédito. E, cada vez mais, fiquemos "protegidos" em nossas ilhas. E, como me disseram ter afirmado o médico, juntemos bastante dinheiro para gastá-lo quase todo com nossas doenças advindas de nossa castigada alma. E terminemos a vida absolutamente infelizes. A guerra continua.
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Desembarquei na estação São Bento. Minha comunicação estava um tanto limitada. Assinei o controle de presença do Metrô. Mas se não o fizesse, não seria cobrado pelo não-ato. Cumprimentei a moça do stand ao lado, sem utilizar de grande simpatia. Ela, por sua vez, ofertou-me novamente seu sorriso bonito, cuja beleza é limitada por seus medos. Se na Idade Média a grande prisão era o medo da morte, a condenação, alimentada e utilizada pela religião católica, a prisão atual são as nossas emoções, tão bem negligenciadas por nós.
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No decorrer das horas que deveria cumprir, na primeira etapa de trabalho, fiz as minhas leituras. Desejei me cercar de revistas, jornais e livros. Tudo como forma de isolamento. Até que me cansei de passear olhos por páginas a fio. Percebi dificuldade de concentração e abandonei as leituras. Quando então me armei de papel e caneta e teci as críticas aqui. E elas se dirigem a mim e a vocês. De certo, meu objetivo maior era fugir dessa minha ilha. Deixar nela apenas meu exército. Triste com a incerteza de obtenção de êxito. Feliz em saber que não sou solitário nessa revolução de si. Angustiado em saber que por mais algumas horas ficaria na estação do Metrô. O problema não são essas outras ilhas. Não me iludo, tampouco posso culpar o outro. E façamos justiça. Muitos que passavam por lá, seguiam livres, desamarrados, o que é bom. A senhora me perguntou as horas. Informei que faltavam vinte minutos para às 14h. Mas isto se fora há cinco minutos...