Superstição



         1. Passava da meia-noite quando comecei a escrever esta crônica, forçando a barra. Sim, porque traiçoeiros cochilos já me haviam lançado, duas ou três vezes, sobre o meu notebook, que, se voz tivesse, teria, com certeza, me xingado; e eu lhe não podia dizer absolutamente nada.
          2. Cochilar, quando invento de escrever, invadindo a madrugada, a bem da verdade, dificilmente me acontece.  Alguns dos meus textos, considerados razoáveis por mim e por amigos extremamente generosos,  eu os rabisquei quando o silêncio do meu gabinete só é quebrado pelo tiquetaque do meu relógio; e tal só ocorre, depois da meia-noite.
          3. Não estranhe, o dileto leitor, se lhe falo, com tanta naturalidade, no tic-tac do meu relógio, num tempo em que eles, os relógios, são silenciosos, passando despercebidos até por aqueles que não ignoram o balanço das horas.
          4. Mas, visitando um desses antiquários que ainda existem em Salvador, comprei um despertador muito antigo, garantindo-me o dono da loja, um espanhol da Galícia, que, como o Tower Clok do Parlamento inglês - e foi o que lhe perguntei - ele não adiantava e nem atrasava um segundo sequer.
          5. Até a presente data, o ilustre galego, vendedor de antiguidades, algumas preciosas, raríssimas, está com a razão. Tem vez, que até peço ao meu despertador que ande um pouco mais devagar; que atrase um pouquinho... Mas não tem jeito: os ponteiros do bicho são implacáveis.
          6. Comprei esse velho despertador, não que estivesse necessitando de mais um relógio de indiscutível precisão. Nesta altura da vida, faço tudo para esquecer que o dia tem vinte e quatro horas.           7. Procuro, na medida do possível, viver o meu dia a dia sem me curvar à rigidez dos ponteiros de um relógio. Nada de me preocupar com os segundos que, juntos, constroem o Tempo. Apredi que há uma imensa diferença entre a pressa e a velocidade.           8. Meu tempo de correr no tempo, ou atrás dele, passou. Já fiz o que pude, e, agora, faço somente o que me é indispensável. Até adotei como lema, e estou me dando muito bem, a lição deixada pelo Imperador romano Otavius Augustus (27 a.C.  a  14 d.C), em duas palavrinhas: Festina Lente, ou seja "Apressa-te devagar".
          9. Porque aceitei, sem relutância, que "o silêncio é o altar da imaginação", conclusão a que chegou o cronista Olavo Drummond, procuro a mudez das madrugadas para escrever minhas bobagens, se não as posso rabiscar, como sempre o faço, nos fins de tarde.
          10. Machado de Assis, em uma de suas belíssimas crônicas, sentenciou, que a meia-noite é uma hora "que apavora".  Fiquei com isso na cabeça. E enquanto os ponteiros do meu velho relógio-despertador não marcam meia-noite e um minuto, eu permaneço de olhos atentos e ouvidos atilados. Ao menor ruído, lembro-me do que disse o Bruxo.
          11. Dia desses, o canto de uma coruja, por coincidência ouvido à meia-noite, não me deixou terminar uma crônica que, até então, escrevia, com surpreendente desenvoltura e inenarrável prazer.
          12. A coruja, pelo que pude apurar, pernoitava na mesma amendoeira que hospeda os periquitos da Pituba e, nas tardes de verão, um arisco bem-te-vi, sobre o qual já escrevi, contando-lhe as peripécias...
          13. A coruja, essa ave de hábitos noturnos, com seu piado imitando uma tesoura em ação, dizia minha mãe, que sua presença, na cumeeira de uma casa, era um mau agouro.  E completava: " Uma mortalha está a caminho; alguém da família deve morrer no máximo em um ano."
          14. Não sei onde minha saudosa genitora foi buscar essa história. Talvez nos alpendres do sertão cearense, nas noites de luar, debulhando feijão verde, nos meses de bom inverno.
          15. Uma coisa eu posso garantir: minha mãe, até partir, aos 96 anos de idade, nunca lera o nosso Luís da Câmara Cascudo. Sua leitura não ia além de algumas crônicas da Rachel de Queiroz.
          16. No seu livro "Coisas que o povo diz"  o folclorista potyguá incluiu a coruja entre as aves agourentas. E sem arrodeios, afirma que as corujas "são da intimidade da Morte e se dão ao desplante de vir rasgar mortalhas, quando o defunto ainda está vivo".
          17. Não sou um cara supersticioso. Mas não quero nada com as corujas; principalmente se elas resolvem aparecer e piar aí por volta da meia-noite. Ainda  que seja na amendoeira aqui ao lado e não na cumeeira do meu prédio.
        
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 29/08/2009
Reeditado em 03/12/2019
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