Opa Klaus, um avô filósofo
Opa Klauss foi menino em Berlim. Brincava nas ruas e praças com os amigos, antes da guerra. Quando veio a guerra, tudo ficou cor de cinza. Faltava comida, carvão, calor. Calor humano o menino sempre encontrou. A mãe de Klauss entrava em longas filas para conseguir um litro de leite, um kilo de batatas, um pé de repolho. Klauss, que gosta muito de salchicha até hoje, ficou meses sem cheirar uminha, simplesmente porque as salchichas e muitas outras iguarias sumiram. Durante a guerra era muito difícil brincar, mas como criança precisa brincar para viver, Opa inventava brincadeiras, contava e escutava histórias.
A cidade era bombardeada, a mãe acordava o filho à noite., e corriam para o porão de casa. No porão a família, os vizinhos, os amigos, ou desconheido, todos liquefeitos, pouco conversavam. As bombas faziam mais barulho que trio elétrico dentro de um pequeno bar. O medo não era da Morte, o medo maior, sobreviver ao bombardeio, e restar enterrado vivo no porão.
Aos dezesseis Klauss fugiu de Berlim com a roupa do corpo. Não se despediu de um só amigo, contava com o sigilo absoluto. Até porque saber de sua fuga comprometeria o amigo. Eram tempos de torturas físicas e morais. A decisão da fuga foi urdida monossilabicamente com a mãe. O pai ainda vagava pela Rússia, eles imaginavam, como soldado. E por lá ficou perdido, sem dar notícias, até que a família o desse por morto. Não morreu. Dez anos depois reapareceu vivo, arrebentado em sua alegria e vontade de viver.
Klaus que não é judeu, teve seu destino misturado ao dos judeus, pois, duas tias irmãs de sua mãe eram casadas com dois irmãos, judeus. Klaus teve também seu destino misturado ao Brasil.
Quando os judeus receberam braçadeiras amarelas com a estrela de David, um dos casais fugiu para a Holanda, onde passou mal bocados, permanecendo escondido em sótão e porões. O outro casal de tios veio para o Brasil, e aqui em São Paulo, durante e depois da guerra criava sua família.
O jovem Klaus sabia que seria benvindo na casa dos tios. E foi. As duas primas o tratavam como irmão. O tio judeu gostava muito de ir à feira, e como Klaus era o único rapaz da casa, o esperava das festas (naquele tempo eram festinhas onde a moçada dançava, bebia guaraná, e comia brigadeiros, não havia baladas...). Pois bem, o tio esperava Klaus na porta da casa, com as sacolas de feira na mão. Antes de cair na cama Klauss fazia a feira com o tio. Não achava isso muito engraçado, mas estava tão contente de estar no Brasil, que quase nem se importava. Aliás, não se importava. Seu coração cantava. Chegando em casa com as compras ia dormir. Acordava na hora do almoço com os aromas deliciosos da comida da tia. Devorava dois pratos cheios, sem a menor ceromônia. Klaus e o tio apostavam quem comia mais, e quem ganhasse, ganhava um chocolate de sobremesa. o que perdia ganhava também.
Um dia Klaus soube da notícia que haviam dividido sua cidade em duas: Berlim Oriental e Berlim Ocidental. Um feio e triste muro passava por sobre ruas, onde antes os alemães andavam livremente. A antiga casa de Klaus ficava agora em Berlim Oriental, um lugar que ele nem conhecia, pois havia saído de lá, antes dessa divisão maluca e arbitrária.
Depois do muro Klaus sentindo muito medo de ser deportado de volta para aquele outro lado do muro, renunciou à cidadania alemã. Virou brasileiro puro, português sem sotaque. A facilidade com línguas vem de seu ouvido musical. Toca instrumentos como flauta, fala várias línguas, além do alemão e do português. E mais, identifica pelo sotaque quem nasceu em Córdoba, Argentina, como aconteceu com Alicia, que ficou comovida e maravilhada. "Puxa vida", agradeceu Alicia, "Como você adivinhou que nasci em Córdoba?", "Pelo seu sotaque, é claro". Claro para Klaus, evidente, pois eu jamais adivinharia que Alicia fosse de Córdoba, se ela não me houvesse contado.
No lugar de filósofo e professor, como queria quando menino, no Brasil Klaus trabalhou duro, viajando e vendendo produtos no interior de São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul. Encontrou em São Paulo sua linda garota de Ipanema, Gisela, filha de Alemães, nascida carioca. Tiveram filhos.
Pois bem, agora é a época de ser o Opa Klauss. O que ele acha bastante divertido. Outro dia foi buscar os netos _ Guilherme e Aninha no colégio. Acomodados no banco trazeiro, os meninos conversam entre si. Opa Klauss os escutava. De repente Aninha faz a pergunta que algum dia teria de fazer, e sobrou para quem? Para nosso filósofo, porque Klauss sem dar aula em universidade é filósofo, um pensador. Nasceu assim.
_ Opa, como Deus fez a gente?
Opa se assusta, é sempre um susto escutar às crianças, que parece, a gente até acha que não sabem nada... Elas sabem mais do que qualquer adulto.
Ao escutar Aninha Opa Klauss sente um frio na barriga. "Por onde começo?", seus pelos se eriçam, inclusive os poucos do topo da cabeça. Por um lado o medo, por outro o prazer. Quando Klauss se anima a responder à Aninha, o neto Guilherme sem cerimônia corta a palavra e os pensamentos do avô, frustrado pela falta de cerimônia daquele jovem, outro filósofo de nascença, puxou Opa.
O menino fala enquanto gesticula com braços e mãos, e Opa vê pelo espelho do retrovisor, com certa inveja, o teatro do neto, enquanto o escuta:
_ Ora, Aninha, e você não sabe? Um dia um macaco ficou de pé, o rabo dele caiu, as palmas das mãos viraram pra frente. Aí a gente existiu.
_ Ah!
, foi o comentário da pequena, que permanece em silêncio primordial, saboreando sua filosófica questão.