VIDA DE PRETO

Quando eu nasci, houve muita alegria, talvez nem tanto, minha mãe queria menina.

Já no quarto, a espera de me conhecer limpo, estranhamente ouviu-se a enfermeira exclamar: "sinto muito, seu filho é preto".

O tempo passou e eu cresci, vieram os irmãos e se foram os privilégios. Nesta época eu descobri o que é responsabilidade, em pensar que os filhos nem eram meus, apaixonei-me por um ditado: "quem pariu Matheus que se balance!".

No começo estava bem, financeiramente falando, até que, como todo bom preto, virei pobre. Daí vieram as economias, um lápis, um caderno e uma caneta para o ano todo; parece fácil, mas não é.

Pode o leitor estar pensado, "o que isso tem haver com ser preto?", não sei, mas meus colegas brancos não tinham esse problema.

Quando parti para a quinta série, nova faze da vida, aprendi rapidamente que no mundo dos homens o mais forte sobrepuja o mais fraco, no caso eu. Apanhei bastante na escola, coincidência ou não, meus agressores eram brancos. Acredito na verdade que apanhava nem tanto pela cor, mas pelas regras. Que regras? As regras dos machos. Se o leitor for mulher, talvez não entenda bem ou até pense que estou mentindo e que nós homens não somos tão selvagens assim. Se porém for homem, há de concordar comigo.

No mundo dos homens é preciso se impor, seja para arrumar namoradas ou para viver em paz uma vez que as regras são claras, se você não se impor sobre alguém, ele se imporá à você, caso não faça, outro se imporá sobre ele e você.

Este se impor vai desde piadinhas ridículas como "bichinha" até agressões físicas em grupo, o que também já passei. No meu caso não apanhava só na escola, os garotos da minha rua também gostavam deste esporte. Não é de se admirar que só tenha arrumado namorada aos dezoito anos.

Em relação às mulheres, conheci uma moça na quinta série, foram meus primeiros toques numa mulher, certo que não passaram de mãozinha dada. Depois disto minhas relações com o sexo oposto resumiam-se em queixas: eu ouvindo e consolando-as pelos namorados safados. Se não tomei iniciativas? Claro que sim, e as respostas eram sempre as mesmas: "não quero estragar nossa amizade" e "você é um ótimo amigo". O que que isso tem haver com ser preto? deve estar se perguntando. Não sei, talvez o tempo e espaço.

Em casa a vida também não era fácil, todos os dias via minha mãe chorando aos cantos pelo abandono por meu pai, ou por ver seus filhos terem para comer café com farinha, refeição essa não muito atrativa, porém bastante nutritiva.

Belo dia meus pais se acertam, isso me fez feliz. Anos mais tarde consegui minha primeira namorada. E então tudo ficou melhor. Gostaria eu, continuei sem dinheiro e ela me deixou com o pretexto de que eu não beijava bem.

Na adolescência foi expulso da Catedral da cidade uma vez. Dá pra acreditar que alguém foi expulso da igreja? Pois é, eu fui. Quer explicação? Ela - a igreja - estava cheia de turistas que haviam aportado na cidade em um cruzeiro de férias. Coincidência ou não eram todos brancos.

Anos mais tarde veio a Universidade, que depois do shopping da cidade de Salvador, o local com o maior número de gente branca que eu já havia visto. E eu continuava sem dinheiro, o problema é que não tinha como comprar as caríssimas apostilas que os professores exigiam, e então tirava notas baixas. Isso se chama Seleção Natural, mas, este é outro assunto.

Para me deslocar de casa para a Universidade, dependia bastante do meio de transporte mais utilizado pelos pobres do mundo, desde a criação dos veículos de transporte: a CARONA. Cheguei a passar horas na rodovia esperando uma alma boa, enquanto as mulheres se iam em três minutos e os branquelos em dez. É interessante como você consegue estar tão perto dos carros e mesmo assim não ser visto pelos motoristas, me sentia o homem invisível, e por coincidência ou não, esses motoristas eram brancos, ao menos a maioria deles. Falando nisso, você sabem o índice de negros que possuem carrões? Eu não sei, mas espero ser um no futuro.

Como quase todo bom homem, conheci a mulher com quem queria me casar. Ela era branca, mas foi a primeira a dizer que me amava. Casei com ela. Tivemos seis filhos, sendo quatro meninas. Quando nasceu o primeiro, "que alegria é um menino". Foi uma festa, até que se ouviu um "ah não". E então o silêncio. O médico se aproximou e com a criança e disse: " sinto muito pai" - eles sempre nos chamam assim - "mas seu filho é preto". E recomeçou o ciclo.

A raposa
Enviado por A raposa em 28/08/2009
Reeditado em 08/12/2013
Código do texto: T1779266
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.