NARCISO SEM ESPELHO
Há pessoas que já nascem brilhando. Pelo menos na óptica de suas mães e da expectativa da família. "Vejam como é lindo!", "Será ainda mais brilhante que seu pai e seu avô", são frases que se tornam naturalmente presentes a partir de então. A pequena criatura, mesmo antes de aprender a falar, usando fraldas como todo bebê e produzindo aqueles subprodutos da nossa humanidade de bichos, já está fadada ao sucesso. Em sua reduzida compreensão do mundo dos adultos, brinca com a xupeta como todo e qualquer bebê e não passa de um bichinho indefeso e sujeito a irracionalidade da família. Seu destino está selado.
Assim ele crescerá rodeado de aprovações a sua pessoa,uma imagem perfeita erguendo-se nos sorrisos e louvores do mundo exterior. Sendo que o exterior então, passa a ser ele mesmo, avistado num pedestal e assim introjetado novamente como única realidade verdadeira onde quer que vá.
Qualquer um de nós já cruzou com espécimes desta natureza, seja como colega de escola, de trabalho ou mesmo em relações familiares. Eles se tornam tão intocáveis que chegará o momento em que não permitirão sequer a presença de algo que não funcione como reflexo e que não lhes traga a confirmação da sua pretensa superioridade. Alcançada uma situação insustentável, deve-se temer por nossa integridade e evitar cruzar com esses inconformados raios laser.
Entretanto, mesmo rejeitando aqueles vidros onde o fenômeno da reflexão luminosa não logra produzir-se, nosso Narciso pós moderno anseia pelo dia em que tal forma embrutecida e forjadora de conceitos falsos sofrerá uma mutação a seu favor, e pra isso não mede esforços em tentar imiscuir-se em domínios adversos, sempre contando com uma reviravolta favorável. Todavia, em sua ansiedade poderá dirigir seu foco com mais energia que o bom senso permite e diz-se no estudo da óptica geométrica que um foco de luz cuja trajetória é interrompida fará deste ponto o caminho inverso em direção ao ponto original. E talvez alguma lei da física ou das relações humanas diga que um objeto lançado contra um alvo complacente, tornará a voltar em direção ao ponto de partida com força igual ou superior à que foi empregada pelo arremessador.
Neste momento, o bebê-adulto sofrerá muito, não vendo seu brilhantismo confirmado em lagos turvos e indiferentes a sua grandeza. E, quanto mais ele tentar limpar as superfícies refratárias com palavras duras e movimentos tresloucados, mais turvas e esquerdas ficarão tais estruturas. Pois elas , por sua natureza, tem na aparência desagradável sua defesa contra a arrogância dessas luzes produzidas pela energia fátua da vaidade humana.
Com o passar do tempo e o desgaste de um facho produzido com energia não renovável, os espelhos , mesmo os mais bem elaborados puxadores de saco e afins, começarão a ter dificuldades de cumprir seu papel mecânico. Já dizia aquele velho samba com propriedade:" Narciso rejeita tudo que não é espelho". E o interessante é quando dois desses se cruzam, como se postula no conceito de independência dos raios de luz: "...um não interfere na trajetória do outro, cada um se comportando como se o outro não existisse." Pois não é que a física imita os humanos?
Vai faltar espelho sim, neste mundo onde não há purpurina que baste pra festejar mediocridades. Seja os com bistrô, o tal bistronês, os com botão francês ou aqueles simplesmente colados. Seja de raro cristal ou de reles vidro, em paredes palacianas ou pendurado em prego num barraco sujo. Porque nada fica parado. A evolução, como simples substantivo comum, pode significar nada mais que a transformação constante, pois a vida tem seus ciclos. Os adjetivos, esses sim, ficam por conta da vaidade humana.
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Publicada em 24 de novembro de 2006. Revista e republicada em 27 de agosto de 2009.