TODO DIA

Começo o dia num acordar lento, pausado, como um pintor que prepara as tintas, abre o cavalete, separa seus pincéis, renova sua palheta, respira e inspira.

Abro meus olhos para a paisagem em minha volta e por mais que ela seja conhecida, ela hoje é vista por novos olhos, olhada por um novo eu que acorda. Um detalhe que seja uma pequena mudança muda o quadro da vida e o dia faz um novo momento de minha estrada de existir. Revejo meus sabores matinais, o café com leite me aviva, o pão com manteiga me sacie a fome que acorda comigo, os sons do mundo me alertam a vida começa a me chamar.

Novamente penso na obra a ser feita, na paisagem que resultara da ação deste dia e imagino as suas cores que começam numa cor azul acinzentada de meu amanhecer urbano, não se ouvem tantos pássaros, como numa paisagem bucólica, mas são sons da cidade, crianças a chegar numa escola, ferramentas de algo que se constrói ou se reforma, carros, até mesma a urgência das sirenes. Mas aos poucos e com boa vontade vou dando forma também a estes sons. Vou diminuindo a freqüência dos que me ferem e aumentando o volume do pássaro que insiste em estar presente em seu canto e que lindo canto. Ele se destaca em minha paisagem, a ele escolho ouvir.

Novamente como o artista que faz a paisagem busco a forma que farei em minha manhã. Organizarei meus objetivos de vida para este dia, reunirei forças para vencer a vontade de ficar na inércia, vou produzir.

Banho os suores do antigo eu, que não acordara mais e construo meu novo apresentar, roupas, penteado, bons cheiros, sapatos. Assim arrumo meu arsenal de ser humano, estou pronto para meu pintar do dia.

Passa parte do dia e volto à paisagem lá fora, na moldura definida de uma janela, vejo que as cores começam a esquentar, o dia já tem em sua luz um amarelo as nuvens estão mais definidas e brancas, os sons de uma sociedade viva se fazem presentes, fortes, rápidos, mas aos poucos eles passam a fazer parte de um lado da vida que ignoro, para manter a tranqüilidade de existir, pois a atenção a tudo nos atrapalha e mesmo impossibilita.

Minha obra já esta no meio, vejo que o dia já foi produtivo, por traços ainda não acabados percebo que foi valido o meditar matutino, que estou ainda novo e que minha paisagem esta se desenhando num misto de destino e de minhas interferências, neste momento já compartilho o dia com minha parceira que também faz seu dia a dia, vem o momento de um novo alimento, um almoço a realizar. Em minha vida sou eu que cozinho pois gosto de dar a ela o sabor que desejo, escolho o cardápio e o fogão toma seu ritmo, de forma alquímica e intensa, cheia de cheiros, sons e sabores, alimento já ao fazer a comida. Sento em boa companhia, construindo a energia do meu corpo e troco palavras de planos e atitudes, memórias de feitos e de futuro. Assim me alimento.

Reconheço na tarde um momento de produzir para a sociedade que me cerca e este detalhe vai a minha ela do dia, na produção de meu papel de ser no social, recados, telefonemas, os sons são de chamar a atender, a olhar, consultas ao relógio, tempos marcados, pinceladas rítmicas que não podem se atrasar para que não se falhe em meu status e assim segue o dia, as cores na paisagem agora saem de uma parte mais intensa da palheta, o dia se madura num laranja mais forte e já aparece o vermelho do parar, o ritmo aos poucos vai também diminuindo.

Baixa o sol que fez os contornos deste dia se definirem em linhas fortes, agora as cores se misturam e vem à noite, começa a existir a idéia de descanso, faço o sabor do jantar, vejo um filme escolhido e a conversa é de amor, de existência, de como vimos e vivemos aquele dia.

La fora a paisagem é de luzes artificiais, a cidade não para durante muito tempo ainda, dizem que ela nunca chega a parar, mas dentro já é hora de descansar. O braço da noite, o pintar que se finaliza, os amantes que jogam toda energia ainda contida, numa atividade de amar, buscar o prazer espalhando no orgasmo o ultimo pincelar do dia, a mente se aquieta, o sono chega e agora a pintura vai ao sonho, acaba este dia.

Guilherme Azambuja
Enviado por Guilherme Azambuja em 26/08/2009
Código do texto: T1775235
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