O enigma de si por si
Tinha por si um sentimento de desprezo. Via em sua imagem o nada, a existência pretificada sem forma, sem essência, sem modelo, matéria primitiva anônima, londe de ser esculpida. Assoava o nariz na ponta da saia e sempre saia a roer as unhas no canto da sala sentada em um tamborete. Cruzava as pernas e ali passava minutos, horas, tempo que não se contava no relógio da parede a pensar na vida passando pela janela do oitão da casa. Quem era na verdade? Existia verdade na sua existência ou o próprio ato de pensar em si nada mais era que o próprio ato de sentimento de desprezo por si.
Sentia-se feia, muito feia e com este sentimento ia tentando decifrar-se, dar sentido a algo que para ela nem existência tinha, uma caixinha de surpresa criada e esquecida pelo seu criador, trancada em segredos esquecidos. Seria para si o desconhecido rodando em volta de si ou buscava nas voltas dadas para si, ser desconhecido, pelo fato de não sentir forças de pensar diferente. Fácil de entender? Imagina para ela. Não sabia, não tinha resposta.
Era pessoa de gestos vagos, inexpressivos, bruscos, corriqueiros. Buscava sempre fazer o óbvio, o que já era esperado. Na arrumação da casa, os móveis sempre nos mesmos lugares, os jarros de flores artificiais de longos anos lavados e postos ao sol todos os sábados à tarde e durante a semana inteira a mesma comida, o mesmo arroz branco, com o mesmo feijão cozido no alho e o mesmo picadinho. Não sabia inventar, transformar, ousar, não. As roupas tinham os mesmos cortes e cores parecidas. Com três saias e cinco blusas conseguia fazer várias combinações.
Tinha olhos castanhos arredondados, da cor de mel e cabelos cacheados e volumosos, uma pele morena embranquecida pelo pouco sol que tomava. Ainda moça adquirira o hábito de ler romances clássicos e todos os dias, depois do sono da tarde, sentava-se na porta da frente da casa, abria a parte de cima e lia, lia o mesmo romance várias vezes para certificá-se da história. Lia e chorava e ria sempre com as mesmas cenas. Contava cada parte como se aquilo fosse sua própria vida. Era um ser singular.
Aos domingos chegava cedo a igreja, ajoelhava-se e ficava em silêncio até o momento em que o padre chegava e dava início a celebração. Ficava atenta e não perdia uma só palavra. Era um momento sagrado. O momento mágico da comunhão com Deus. Na elevação do cálice e do pão, seus olhos tesos, fixados e todos nas apostas querendo saber o que poderia estar sendo pedido naquele momento.
Os mais maldosos acreditavam que tal piedade só poderia ser para que surgisse um homem que lhe fizesse a caridade, livrá-la do caritó; outros mais amenos achavam que não, pedia pela cidade, pela família que há tempo lhe dava casa e comida em troca de trabalho e outros mais afoitos achavam que ela pedia a morte, pois era sagrado sair da missa e ir ao cemitério velar pelas almas daqueles que um dia havia lhe estendido as mãos, almas partidas para o além túmulo e esquecidas pela população da humilde cidade de Passarás das Rochas.
Tinha quem dissesse, as piedosas senhoras de mais idade, as beatas, carolas, guardiãs dos bons costumes e das línguas fuxiquentas do lugarejo que era uma catimbozeira. Ia à missa, recebia a comunhão, o corpo sagrado do filho de Deus, depois ia cuspir nas terras do cemitério. Algumas até cruzavam os dedos em figa por achar tal ato sacrilégio. Viravam-lhe o rosto ao cruzar com a dita cuja em lugares públicos, não a convidava para reuniões sociais ou festejos comemorativos. Tinham-na como uma aberração, um ser não merecedor de está viva e por mais que questionassem, não entendiam os motivos pelos quais a família distinta da cidade havia aceitado aquele ser aterrorizante no seio de tão respeitado clã familiar.
Os mascadores de fumo e desocupados chegavam a afirmar que em noites escuras viam quando a mesma passava, feito múmia para o lado do cemitério. Toda em branco dos pés às mãos. Vinha como se viesse voando, suspensa. Poderia vê-la somente aqueles que de fumo na boca, mascavam e cuspiam para agradar as Caiporas, os espíritos arruaceiros protetores do vento e da escuridão da noite. Era um relâmpago, um estalar de dedos, um piscar de olhos. Não viam o rosto, mas pelo arrepio do corpo sabiam que era a morta viva Maria de Jesus, a Senhora das Marmotas, padroeira dos atimotados. Uns se benziam enquanto outros passavam as mãos nos braços para sentir os cabelos arrepiados. De repente esfriava, segundo todos, hora de bater as portas, apagar as lamparinas e em prece sonhar com o bicho do dia seguinte.
Conversas e conversas e conversas de calçadas, de esquinas, de gente que tinha tempo sobrando para matutar certas tolices. O sol nascia no horizonte e o mesmo cotidiano era pintado enfeitado pelos chamados boca de lascar a contar e zoar o que havia presenciado na noite passada. Cada um com sua versão, eufóricos, aquilo tudo aumentado em dois contos e virado lenda na cidade pela oralidade dos que gostavam de contar.
Chamava-se Maria de Jesus. Chegara àquela cidade trazida por uma família de romeiros sem destino certo. Diziam não ter parte alguma com ela. Contavam-se já cinco anos que estava na companhia deles e fora encontrada dentro de uma cesta numa lagoa em terras distantes, sem nada, sem qualquer identificação. Trocaram-na por alimentos, roupas e foram embora e nunca mais voltaram. Aquela menina feia, magricela de olhos arregalados e assustados. As unhas roídas e feridas, descalça, maltratada. Um projeto humano rabiscado.
A família que a acolheu, cuidou dela lhe dando escola e prendando-a com cursos de prendas domésticas, além de mimos e carinhos. Era uma família numerosa e a Maria sempre se mostrou disposta. Ajudava a mãe de criação nos afazeres, uma senhora gorda, alta, religiosa fervorosa que tirava todas as novenas de santo do ano do mesmo modo que tirava a alma daqueles agregados e empregados da casa. Não aceitava nem perdoava erros, para ela o chicote de açoite dos bichos era a melhor lição. Castigava sem piedade. Puxava de uma perna desde que fora acertada pelo coice de uma burra prenha. Mas de sua forma soube amar e deu amor a todos os filhos.
A menina Maria, disposta que só animal de carga para o trabalho foi, aos poucos, ganhando o posto para si. Da mãe aprendera a firmeza, a disposição, os gestos rígidos. O pai era feirante e morreu em uma emboscada quando viajou para comprar mercadoria.
Para a menina foi uma morte triste porque era muito apegada aquele bom homem e anos depois, quando já completava seus dezoito anos, quatro anos após a morte do seu benfeitor, sua benfeitora foi acometida de um mal que os médicos não conseguiam descobrir, chamavam, então, de aquele mal. Acamada, sem poder mais dá conta dos afazeres, Maria se dedicou a cuida da boa senhora, enquanto que os filhos de sangue iam casando e arribando para suas casas.
Foram anos de trabalho duro. Agora se encontrava com vinte e cinco anos, os pais mortos e ela a cuidar dos irmãos que ainda moravam em casa.
Tornara-se numa morta viva como era de costume chamá-la. Motivo de piada para toda a cidade. Cabelo sempre amarrado para trás como se fosse um rabo de cavalo, o rosto sem nenhuma maquiagem, sem brincos, colares ou pulseiras. Blusas de mangas compridas, saias compridas e botinas. Passos largos e apressados. Nunca olhava para os lados embora se mostrasse sensível as paisagens naturais. Adorava ver pássaros voando, borboletas por sobre as flores e mostrava-se indignada em seu silêncio quando via um homem tratando brutamente um animal, fosse cavalo, jumento, cachorro. Não dizia uma só palavra porque seu silêncio e seu olhar já diziam tudo.
Maria de Jesus não tinha amigos, nem amigas, nem andava na casa de ninguém. Era uma mulher do lar. Falava apenas com os irmãos, falava o necessário ou quando alguém pedia para contar a história do romance que estava lendo ou que acabara de ler. Gostava de rir, ria com as peraltices dos sobrinhos, ria de si mesma se olhando na água do tanque, da imagem que se formava saindo de si e tinha imensas crises de choro. Chorava com o nada, do nada. Copiosamente se desfazia em lágrimas. As vezes horas, dias, noites inteiras derramando lágrimas.
Chegada visita, ficava em seu canto, em sua cadeira de balanço ou na cozinha onde sempre encontrava algo a se fazer. Não participava das prosas, servia o café, o aperitivo, a água. Nos meses de Janeiro e fevereiro acontecia a peregrinação do Santo padroeiro do lugar, São José. Chegado em sua casa, ela preparava a mesa, acolhia as rezadeiras, acendia as velas, fazia a vigília do santo e depositava na sacolinha das ofertas todo o seu salário do mês. Era uma devota fervorosa. No outro dia, colocava o andor no santo na cabeça e com os pés descalços ia conduzindo o santo pelas ruas até chegar na próxima casa da visita do pai do salvador. Ali permanecia de joelhos até terminar a novena. Ia para casa e só era vista na procissão. Recolhia-se em jejum. Entregava-se ao trabalho de sol a sol. Arava a terra, capinava, planta o milho e o feijão e esperava a chuva mandada pelo santo protetor. Colhia o fruto do trabalho e participava do preparo das canjicas, das pamonhas, dos mingaos de milho e das grandes paneladas de milho cozido e baião de dois para ser comido acompanhado de carne seca assada na brasa.
Mas como tudo na vida, nem tudo é como parece ser, sempre um fato acontece para que haja a reviravolta, o acontecimento contrário.
Absorta em sua própria sorte ia vivendo, tentando decifrar-se, mas como? Que mistério poderia ter uma pessoa que nasce do nada, por nada chega e sem qualquer pretensão vive, se instala na vida sem ao certo saber se vive ou não. Maria de Jesus, só. Isso para ela bastava.