LINHARENSE “PAI D’ÉGUA”
Aos 19 de julho de 1972, por volta de 18 horas, onde hoje é a Medcenter, uma menininha comia avidamente suas mãozinhas num berço de hospital, enquanto na sala de cirurgia os doutores José Augusto Felício e Oswaldo Ayres de Alencar lutavam para salvar sua mãe, uma mulher de 46 anos.
Diante de um parto tão difícil e da proximidade da morte, eu abracei a garotinha e jurei que a protegeria. Nos dias seguintes, enquanto a mulher se recuperava, eu ouvia a perversa pergunta feita pelos curiosos idiotas, que adoram colocar as caras nas portas de quartos de hospitais: “Esta é a velha que ganhou neném e ficou doida?”. Ridículos! Mil vezes ridículos! Aquela era nossa mãe, atordoada por tanta anestesia... o bebê era minha irmãzinha, a quem batizei como Nandressa.
Dela eu cuidei com carinho materno, aconcheguei em meus braços, banhei e cuidei do umbigo, enchi chuquinhas de chá de erva doce, depois de leite, fiz e dei todas as mamadeiras e papinhas, contei historinhas e fi-la dormir muitas vezes. Era minha “filhinha” e lembro-me bem, chorei de saudades quando, alguns anos depois, nossos pais foram morar em Jacaraípe.
Aos quinze anos de idade, ela perdeu nossa mãe e aos vinte e dois o nosso pai. Reunindo forças, decidiu mudar-se para capital mineira, estudar Artes Plásticas e especializar-se em restauração de obras. Por lá, aprendeu a fazer cenografia, adereços e direção de palco, passando a entender muito sobre óperas.
Hoje, após passar pelo Palácio das Artes em Belo Horizonte e pelo Teatro Municipal de São Paulo, ela é produtora de festivais internacionais de óperas no Theatro da Paz em Belém do Pará, e em seu currículo constam mais de trinta peças, dentre elas: Aída, Turandot, Lohengrin, Carmem, O Barbeiro de Sevilha, Il Guarani, Don Giovanni, Gianni Schichi, Rigoletto, La Bohème, Madame Butterfly, Dom Pasquale, Olga, João e Maria, A Italiana em Argel e Romeu e Julieta.
Recentemente, quando, por seu convite, pela primeira vez em minha vida eu pude assistir a duas récitas (nome das apresentações de óperas) de cinco atos, num lugar magnífico como o teatro da capital paraense, eu vi o quanto minha irmã é profissional, querida no meio artístico e prestigiada pela imprensa.
Fiquei feliz por mim e por cada linharense que ora me lê. Quero muito que um dia ela deseje voltar a viver em sua cidade ou seu Estado natal, mas entendi que isso não tem a ver com desejo e sim com sobrevivência digna, pois certamente por aqui seu know-how não tem utilidade e, consequentemente, não tem valor.
Percebi que ela não sofre muito com isso e nem com o calor escaldante de Belém, pois eu a vi caminhando fagueira no famoso Mercado do Ver-O-Peso, apesar do forte “pitiú” (cheiro de peixe) do lugar.
Sei que ela adora nossa culinária, mas já se delicia com as comidas típicas paraenses como: pato ao tucupi, arroz de jambu, filé de filhote, camarão seco, tacacá, maniçoba, souflé de aviú, unha de caranguejo, cupuaçu, açaí, bacuri, murici, taperebá, sorvete de tapioca...
Uma outra evidência é o sotaque: embora, às vezes, use o pronome “você” falando comigo, parece mais uma paraense (eles articulam o “s” chiado como os cariocas), quando fala coisas como: “Tu fizeste uma boa viagem?”, “Tu gostaste da ópera?” ... E ao despedir-se de mim no aeroporto “Tu levas um beijo pra cada linharense “pai d’égua”.
Como incluo você, meu leitor, entre as pessoas a quem ela se referia; por meio desta crônica eu lhe transmito seu beijo e informo que Nandressa é quase uma “papa-chibé”, mas é outra “pai d’égua”, porque em seu currículo, exposto nas revistas distribuídas aos numerosos gringos que frequentam as récitas, ela orgulhosamente começa seu texto atestando: “Nascida em Linhares...”
Papa-chibé = nome que se dá aos autênticos paraenses por gostarem de tudo, inclusive açaí, com farinha grossa de tapioca.
Pai d’égua = expressão paraense que significa “bacana”, “excelente”.