Gostando de Ser

Gostando de Ser

Sabe aqueles dias em que não se tem vontade de nada? Aquelas manhãs que embora estejam ensolaradas, a claridade atrapalha? E a vontade de enfiar a cabeça debaixo dos lençóis e passar em branco? Vontade de tomar um comprimido, dar um “reset”, e acordar só no dia seguinte? Assim se anunciava minha sexta-feira. Dia de branco, expressão mais racista, que vira e mexe eu uso sabendo que não estou sendo politicamente correta. Mas o trabalho espera, tenho cinco obras para supervisionar e uma reunião com uma cliente crica que insiste em usar o nome do pobre arquiteto para atrapalhar o meu trabalho de engenheira. E aposto que faz a mesma coisa com o arquiteto usando o meu nome em vão. E a obra se alastra. E nunca termina.

Levantei da cama. Entrei no chuveiro, coloquei a primeira roupa que vi, um vestido florido e umas sandálias de plataforma. Nem olhei no espelho. Pra quê? Saí de casa correndo. Parei no bar da esquina para tomar um café com leite e comer um pão chapado. O café estava aguado, o pão estava sem graça. Reclamei com o padeiro que muito à contra-gosto me serviu outro café, sem leite, sem açucar. Amargo.

Enquanto eu pensava no trânsito, entrou na padaria uma senhora que me chamou atenção. Ela devia ter uns quarenta e cinco anos, trazia um terno combinado, sandálias de salto alto, brincos de argola e o cabelo preso num rabo de cavalo que lhe dava um ar jovial. Não era alta, nem baixa. Nenhum de seus atributos me chamava atenção, mas ela, no todo, se fez notar. Sorrindo, ela se aproximou do balcão e pediu um espresso e um pão de queijo que comeu com vontade. Pediu mais um. Abriu a bolsa e tirou de dentro um caderno e começou a escrever. De vez em quando olhava em minha direção e sorria.

Como não sei o seu nome resolvi chamá-la de Iracema. Ela tinha cara de Iracema, e Iracema é um nome bonito, das antigas (ou alguém conhece algum bebê chamado de Iracema?), que evoca força, nome de pessoas enraizadas, sensíveis à natureza e ao ciclo da vida. Nome de índia.

Iracema parecia guardar um segredo. Parecia estar contente consigo mesma e com a padaria, com o trânsito, com a perspectiva de mais uma sexta feira. Parecia conhecer os mistérios da vida e sua missão nesta terra. Parecia ter feito às pazes com o destino, com o que tinha, e com o que podia esperar mais para frente.

Enquanto escrevia freneticamente no caderno não sei bem o quê, parecia não se importar com a música sertaneja que tocava no rádio, e que me incomodava, invadindo a minha manhã. Iracema parecia destinada à felicidade. Seus ombros largos e queimados de sol não traziam nenhum vestígio de cansaço ou tensão. Suas mãos, com as unhas cortadas rentes tinham algumas veias e manchas salientes com as quais ela não se importava. A serenidade estampada em seu rosto sem maquiagem atenuava as linhas de expressão ao redor de seus olhos. Rugas de risadas felizes, pensei.

Embora ela não fosse bonita, Iracema, na minha fantasia, era uma mulher pela qual os homens se apaixonavam e cometiam loucuras. Iracema era dona de seu castelo. Iracema, na minha fantasia, tinha sido muito amada, tinha sido largada, tinha tido seus filhos, tinha tido de tudo na vida e percebido que precisava de muito pouco. Iracema tinha sido santa. Iracema fora doida. Iracema agora gostava de se arrumar para si própria, sem esperar do outro o que ela podia encontrar dentro de si mesma. E gostava de tomar café na padaria. Sozinha.

Taí uma mulher que gosta de ser. Uma mulher que se sente à vontade consigo mesma, que não lhe importa a solidão, a falta de grana, o café aguado da padaria, as notícias de falcatruas na tevê. Uma mulher que não se importa com o juízo que os outros fazem dela. Lembrei de uma crônica famosa da Clarice Lispector chamada “Se eu fosse eu”. Na crônica a Clarice, toda vez que perdia alguma coisa se perguntava: “Se eu fosse eu aonde eu teria guardado isto ou aquilo?” Uma pergunta simples que clama por outra pergunta: Se eu não sou eu, quem eu sou? Iracema, na minha fantasia, parecia ter encontrado a resposta que ludibriou tantos poetas, filósofos, analistas e pensadores há séculos.

Se esta mulher fosse ela, ela seria exatamente o que ela é: Iracema. Nada mais, nada menos.

Obrigada Iracema, aonde quer que estejas!