Réquiem para um descrente

Hoje está completando quatro anos da morte de meu irmão e agora começo a perceber quais eram seus anseios em vida. Para mim, Victor sempre fora um jovem rebelde, comumente chamado “do contra” pelos amigos e até por nós, seus familiares, pois sua conduta não estava pautada naquilo que a sociedade define como o certo e errado, bom e mau, céu e inferno. Acima de tudo ele tinha suas próprias opiniões e era senhor de seus próprios juízos.

Ele não freqüentava igrejas. Tampouco tinha religião. Mesmo assim, era um bom caráter, muito trabalhador, inteligente, altruísta até.

Certa vez, entregou-me alguns rascunhos escritos a mão e disse: - Olha, Vitória, você sabe que todas as minhas vontades, minhas ações e meus projetos são executados de acordo com a minha consciência. Eu não sou submisso às várias ideologias propagadas por algumas instituições. Também nunca fui seduzido pelo modismo. Sempre tive minha própria opinião. Pois bem... Este documento que hoje entrego a você é uma espécie de testamento. Sei que muitas pessoas não me entendem e me interpretam de forma equivocada. Quando eu morrer quero que as manifestações fúnebres sejam feitas de acordo com o que está estabelecido nestes manuscritos. Aqui estão todos os meus desejos. Os textos estão lacrados neste envelope. Quero que os leia somente no dia em que eu morrer.

Anos se passaram. Eu me casei com um dentista e dediquei-me, então, exclusivamente, ao lar e aos dois filhos, que são a razão da minha vida. Victor seguiu sua vida sempre atolado nos livros e em suas elucubrações hereges.

Victor, um certo dia, se foi... para bem longe, para o céu, talvez. Pelo menos esta é a esperança que nos conforta.

Li atentamente o testamento, dedicado a mim sua guarda, enquanto o seu corpo era preparado para o velório.

As primeiras palavras foram um choque! Soaram como um pandemônio. Victor dizia-se ateu. Não acreditava em Deus – nem com maiúsculo e nem com minúsculo. Também não cria no diabo. Em santos nem cogitava essa possibilidade. Ele agredia toda a moral cristã com sai filosofia iconoclasta e desprezível.

Dizia ele que não queria lágrimas em seu velório, pois fora um homem livre em vida. Os entes deveriam regozijar-se por ele ter estado acima da humanidade e da hipocrisia com suas transgressões. E até zombava de nossa fé. “Quero que sirvam vinho e que todos tomem o cálice de meu sangue”. Será que ele acreditava ser imortal?

Victor escreveu: “Eu convivi com vocês, suportei a fraqueza de todos, a hipocrisia, tentei mostrar o caminho da liberdade com meu exemplo de vida. Fui feliz e fiz tudo o que tive vontade de fazer. Ninguém me iludiu com a tal vida eterna em troca de minha subordinação e da virtude cega. Eu fui um Super-Homem. Estive além dos homens. Entendam a virtude cega como os juízos que vocês fazem do que os ‘santos’ da Terra ordenam que façam: “Sedes totalmente submissos e temam o Senhor”. Enfim, não quero lágrimas em minha despedida. Sei que será difícil, mas tentem!

Ele não queria que seu corpo fosse enterrado. Desejava ser cremado para que suas cinzas alimentassem algum fruto que alimentasse algum homem. Para ele, este homem teria dentro de si um pouco da centelha da liberdade.

Um dos pontos principais do texto, escrevera, era assustador! Oh, céus!!! Victor não queria nenhuma cruz em seu velório, representação de Nosso Senhor. Meu Deus! Exigia que o seu corpo não passasse pela igreja para receber as exéquias. “Nunca precisei disso porque nunca precisei do Deus do céu. Meu deus está dentro de mim. É a minha consciência. Todos os pensamentos, idéias, vestimentas, palavras e relações de família dos fiéis religiosos são regulados pelas igrejas. Estas pessoas não têm vontade, nem arbítrio e nem sentir próprio. Seu único direito e único dever é aceitar tudo sem questionar”, defendia.

Chamei nossos familiares e coloquei-os a par das vontades de Victor.

Cinco e meia da tarde. Nada de vinho. Muito choro e tristeza. O cortejo sai da casa de mamãe em direção à igreja, onde o padre entregou sua alma para Deus – ou para o diabo. O corpo de Victor foi enterrado na sepultura da família e ele nunca mais pôde renascer nesse mundo, em outro homem. Seus escritos foram queimados perante todos os familiares. Assim acreditávamos estar minimizando os pecados de Victor perante Nosso Senhor. Quem sabe, talvez, ele pudesse ser aceito no céu?

Seu escritos, ah... Sinto-me confortada em saber que foram destruídos. A verdade soa muito forte para quem possui fé cega, incondicional.

· Capítulo inicial do livro “Réquiem para um descrente”, ainda em produção.

Juliano Rossi
Enviado por Juliano Rossi em 17/06/2006
Código do texto: T177123