O Soltador de Pipas
O Soltador de Pipas
Levanta-se apressadamente para mais um dia de trabalho. Ainda está um pouco cansado pelo plantão da véspera na maternidade, mas tem que seguir para o serviço diurno na Emergência do Hospital distante cerca de vinte quilômetros da modesta pensão onde morava.
O plantão seguia tranquilo e terminaria às dezoito horas, horário de verão com o dia ainda claro. De repente, uma ambulância entra velozmente com a sirene toda aberta anunciando uma emergência. Uma criança é trazida rapidamente pelos enfermeiros para a sala de pediatria. Pela porta principal entram pai e mãe desesperados e aos gritos implorando por ajuda. Começa um tumulto. O ambiente ficou tenso, eletrizado. A angústia era visível em todos os olhares.
Escutou seu nome sendo requisitado pela Pediatria e correu atabalhoadamente pelos corredores. Ao chegar, a equipe já reunida, deparou com um quadro dramático: um menino lourinho de pouco mais de oito anos respirando com dificuldade, os olhos embaçados e agonizantes no leito do Pronto Socorro. Sob o olho esquerdo uma mancha roxa, nariz e ouvidos sangrando. Tratava-se de traumatismo de crânio por atropelamento durante folguedos de soltar pipa. Aquele pequeno corpo não respondia aos estímulos e tentativas de ressuscitação.
Era um soltador de pipas. A respiração difícil anunciava o fim. Momento comovente! A equipe trabalhava freneticamente. Não suportando mais ficar ali foi se esconder na sala de curativos, os olhos úmidos. Teve vontade de chorar! Chorar?? Não, chorar não, não deveria chorar! Tinha que ser forte e aguentou meio engasgado. Controlava-se com extrema dificuldade. Era humano e gostaria de ser assim durante toda sua vida. Sempre pedira a Deus que não lhe tirasse a capacidade de sorrir e de chorar. Tomado de alento surpreendente voltou e presenciou o apagar da vela e de uma vida inocente e breve. O desenlace coincidiu com as seis badaladas do sino da Igreja da Penha anunciando o Ângelus, hora triste que sempre o angustiava, própria para profundas reflexões. Após o desenlace pegou a maleta e saiu do hospital com a alma em frangalhos. O plantão terminara.
No caminho até o ônibus toma consciência de toda sua ignorância no sentido da vida e de sua impotência frente à morte. Mesmo sendo religioso praticante não a aceitava, ainda mais de uma criança. Cada paciente que perdesse levaria junto um pedaço de sua vida. Sente-se, então, invadido por uma enorme frustração que o leva quase ao desespero. Estava no início da profissão, deveria acostumar-se com o tempo, pensava. Mal sabia que esta sensação de impotência iria acompanhá-lo durante toda sua vida.
O ônibus rodava sem parar na volta para casa, os pensamentos não o deixavam sossegar. Pela janela via que o céu se tingia de uma cor cinzenta, opaca, triste. Réstias de raios amarelados penetravam entre as nuvens. O mar parecia engolir o sol. O chão passava velozmente. As primeiras luzes da cidade começaram a ser acesas. Ao seu lado só pessoas desconhecidas conversando animadamente. Tinha ímpetos de se levantar e gritar o seu sofrimento, sua angústia, compartilhando com eles a sua dor.
Mergulhado em tristeza e solidão, impotente diante dos desígnios de Deus, vencido pela grande inimiga, apóia a cabeça nas mãos, relembra angustiado o drama que acabara de presenciar, volta-se para o canto da poltrona, fecha os olhos e reza um Pai Nosso.