Crianças de subúrbio
Crianças de subúrbio
As crianças que viviam nos subúrbios do Rio, minhas contemporâneas, tinham muita liberdade de movimentação, indo para onde bem entendessem; o problema era o dinheiro escasso; principalmente, para alguns que moravam nas fraldas dos morros, em casas mal aparelhadas, com goteiras que causavam um verdadeiro tormento nos dias de chuva. Nas ruas com esgoto a céu aberto, desciam as garrafas, uma lataria absurda e pinicos numa quantidade, que nem sei como era possível; as pessoas pisavam no barro das ruas sem calçamento, e tinham inveja de outras poucas ruas tidas como privilegiadas, pois, tinham calçamento de paralelepípedos; todas as casas das vizinhanças sofriam as conseqüências das chuvas; na Avenida Automóvel Clube, na parte baixa, à rive gauche, tomando por base a linha do trem que ia para Xerém, a água subia até o teto das casas e as crianças faziam caminhadas para apreciar os estragos; outras crianças aproveitavam o rio de esgoto, que transbordava naquelas ocasiões, e nadavam como se estivessem num rio de águas límpidas; a chuva doía muito mais que em outros lugares, pois, a pobreza já dói por si só. Não gostava dos relâmpagos, pois, conhecia histórias terríveis a respeito; em 1951, chegou a cair um bimotor da Panair atingido por um raio! As casas eram frágeis e as situadas na parte elevada do morro eram de difícil acesso com um lamaçal inacreditável; nos dias de sol, podia-se subir ao cume do morro e apreciar a paisagem do Rio num horizonte amplo. As chuvas traziam um trágico prenúncio; mas, numa terça-feira de carnaval em que tive de voltar cedo pra casa por causa do temporal, agradeci à chuva, pois, minha tia que durante muitos anos ficou sem colocar os pés na minha casa por estar contrariada com meu pai, ficou encurralada pelo mau tempo e teve de ceder, dormindo lá em casa pra minha alegria. Não eram só problemas de metro quadrado, considerando material e mão de obra, pois, o trabalho seria em mutirão. Outras questões como educação e saúde já naquela época eram uma coisa terrível, de difícil solução, principalmente pela tuberculose pulmonar que dizimava famílias inteiras. A tuberculose não era coisa nova, pois, eram conhecidas as histórias de Arthur, Príncipe de Gales, filho de Henrique VII, que casou adolescente e morreu logo depois; pra não falar de Chopin, que manchou blusa riquíssima de George Sand, numa crise de hemoptise, ainda a pobre da Mimi enganada por Rodolfo; Manoel Bandeira soreviveu à doença porque era grande poeta e foi poupado pelo destino para completar sua obra. Como dizia, as crianças podiam andar a vontade, fazendo coisas boas e más, porque os pais não tinham como acompanhá-las; havia, por assim dizer, uma educação de fim de semana, tipo motoristas de fins de semana, que nunca ficam bons motoristas. O transporte era uma coisa terrível; havia bondes e poucos ônibus cortando a cidade e trens superlotados. Iniciar uma aula ou trabalho às 8 horas significava praticamente levantar de madrugada. As crianças se divertiam indo à praia, ao futebol, jogavam futebol, iam aos cinemas e circos e procuravam viver num padrão mínimo de felicidade, desde que não lhes faltasse comida em casa; também se os pais não fossem irresponsáveis ou ébrios; coisas muito comuns nas populações mais carentes. De fato, um casal com vida segregada, sofrida, anos a fio, com vários filhos, após um casamento em que se juntavam os problemas, tornava-se algo desesperador. Os brutos também amavam e o amor não era bom conselheiro! De qualquer modo, as pessoas sempre eram solidárias, socorrendo-se mutuamente sempre que possível; hoje quando assisto aos dramas das chuvas nos bairros pobres e nos morros, tenho perfeito entendimento do problema, pois, vivi muitos anos de desgostos com as chuvas; ainda hoje, a chuva me aborrece; crescer saudável e estudar constituíam verdadeiros atos de heroísmo de pais e filhos.