FUI CRIANÇA E SOBREVIVI!!!





Esta história começou quando eu, ainda garotinha, tive que aprender canto e piano. Coisas assim só podem se originar da cabeça de nossas mães. Se você pensa que nesta crônica há exagero, está muito enganado!


Na verdade, você deve estar se lembrando de sua infância agora.


Só o Disney para retratar como o mundo dos sonhos encantados. E ainda ganhar dinheiro com isso!
Com mamãe passei da Disney para a "Realilândia" em pouquíssimo espaço de tempo. O que é a "Realilândia"? Ora, você nunca ouviu falar no Dr. Freud e na Psicanálise? Então, a outra terra dos sonhos não tão encantados.

Voltando à minha infância, enquanto todas, eu disse TO-DAS, as minhas amiguinhas brincavam de boneca, casinha, amarelinha, teatrinho e coisas assim, eu aprendia piano e canto.

Tudo teria sido muito diferente se eu tivesse talento. Mas sabe como é, se a gente não nasce para uma coisa, pode vir Cristo e convencer o mundo, nunca conseguiria nada com minha mãe. Aposto o que você quiser, mas Ele jogava a toalha no terceiro round. Está duvidando? Você não pode imaginar como mamãe é obstinada. Com ela o máximo que consegui até hoje foi um discretíssimo empate. Técnico, obviamente. E assim mesmo, devo este verdadeiro milagre a uma enxaqueca terrível que ela teve neste dia memorável.

Será que você está começando a vislumbrar minha real condição? Se está, parabéns pela perspicácia. Se não atinou, tranqüilize-se. Para mim demorou oito anos... No divã!

Minha professora de piano era muito complacente com a execução que brotava dos meus dedinhos pesados e perdidos. Não tive a mesma sorte com a de canto. Suas caretas me assombravam em repetidos pesadelos e me custaram dois anos de análise quando tornei-me adulta.

Nas festinhas meus pesadelos transformavam-se em realidade. Mamãe me colocava como o centro das atenções, como se o mundo tivesse que se curvar a mim. E curvava de espanto e desgosto. Até hoje desafino falando. Me lembro que meu analista dizia que a vida tem uma lógica implacável. Com certeza não era filho de mamãe.

Nestas festas descobri o verdadeiro significado da palavra trágico. O terror e a vergonha se apoderavam de mim. Não poderia fazer nada daquilo direito. Eu e todas as pessoas também percebiam isto com uma incrível e instantânea facilidade. Menos mamãe...

Tenho que confessar que devo a ela uma certa consciência precoce das minhas limitações. Enquanto todas as crianças se achavam o máximo, eu já possuia muita humildade. Conversei com minha professora de piano e até hoje não sei o que ela disse para mamãe, mas num segundo meu problema estava resolvido. Não tive mais aulas de piano e canto.

Se você pensa que minha vida melhorou, não é o único. Eu também me iludi, mas minha doce ilusão não durou mais que uma mísera e anêmica semana. Durante sete dias eu vivi a mais doce esperança que acalentou a minha alma. Devo dizer que custei muito a ter esperanças novamente. Como dizem por aí, quanto mais você reza, mais assombração aparece. E com mamãe eu percebi que teria que me precaver em um culto ecumênico.

De repente, numa obra cínica do destino, mamãe intuiu que eu tinha muita facilidade para aprender línguas orientais. E lá fui eu aprender japonês. Por que japonês? Pergunte a ela! Eu nunca ousaria desvendar o enigma misterioso que motivou tamanho absurdo.

Pode ser que mamãe tenha traços surrealistas de caráter, o que explicaria sua profunda admiração por Salvador Dali, mas, isto é apenas uma hipótese. Na verdade, acho tudo isto assombroso, mas não vem ao caso agora, pois nunca saberemos o que se passava no mais profundo íntimo de mamãe naquela época.

Meu professor de japonês era um senhor extremamente polido e paciente comigo. E, tenho certeza, em nossas aulas exercitou ao máximo suas qualidades. Fiquei um ano inteirinho tendo aulas com ele, até que consegui pronunciar algumas palavras após oito meses. Mas lembro-me que depois de seis meses já conseguia dominar muitos fonemas.

Pena que os fonemas não me ajudaram muito. Mamãe ficou tão descaradamente orgulhosa daqueles malditos fonemas, que bastava alguém na rua esboçar um leve sorriso na minha direção para que ela me fizesse repeti-los como se fossem poemas. Acho que para mamãe, fonema e poema eram muito mais do que uma rima idiota.

Nestas minhas desastradas exibições bilingües, percebi que minha raiva dava um certo charme ao meu sotaque, enquanto num ato reflexo de ódio, franzia a testa, o que também tinha lá o seu encanto.

Como você pode notar, neste exato instante da minha vida, passei a apresentar uma espécie de internalização dos conceitos de mamãe. Claro, parece também que seus critérios de julgamento foram transmitidos para mim numa espécie de osmose, devido à prolongada exposição comportamental contagiosa.

Obviamente como não progredi no japonês, mamãe achou melhor esperar para ver se eu demonstrava algum interesse espontâneo. Acho que nesta época minha mãe lia livros de Psicopedagogia.

Assim pude respirar por quinze dias e ser somente o que eu era na verdade. Mais uma criança comum... ou quase!



DEDICATÓRIA: Esta crônica de humor é dedicada às desventuras de minha melhor amiga na infância. Com algumas diferenças biográficas: seu talento é imenso tanto no canto, quanto no piano! Publicada pela primeira vez, em 1998, numa revista cultural da colônia árabe no Brasil de circulação exclusiva para assinantes.



(*) Imagem: Google


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Dolce Vita
Enviado por Dolce Vita em 22/08/2009
Reeditado em 22/08/2009
Código do texto: T1767380
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