CENAS E ALGUM HISTÓRICO

CENAS E ALGUM HISTÓRICO

Para Taís

No centro, o morto. À cabeceira, a viúva, mãe. À direita do caixão, Ada. Ana, à esquerda. Alguém comenta a queda da estátua de Lênin. Os mais próximos, como em todos os velórios, relembram as virtudes pessoais (no presente caso, também as revolucionárias) do falecido ali, e alheio a tudo. Ao fundo, o recém-cunhado de Ana conta piadas, sem dúvida, divertidas. As irmãs cruzam olhares, por sobre o peito do morto. Mais tarde, na hora do enterro, as palavras finais do camarada e ateu convicto: “Vá em paz, companheiro”.

Geraldo e eu, deitados sobre o tapete, os pés descalços, ouvindo Ray Charles. Para meu amigo, tempos de vacas magras, quase de fome explícita não fora o dinheiro do figurão, amante latino a invadir-lhe o apartamento, a calar-nos a som, a exigir de Geraldo o meu atestado de militância gay, para nenhum arranhão no status quo. Teve como resposta: “O que somos um para o outro, só a nós dois interessa. Ponha-se daqui pra fora”.

Na casa reminiscente (e remanescente) Ana e a mãe à mesa, no horário politicamente correto de todos os dias, diante do cardápio, selecionado arco-íris: cenoura brócolis pimentão amarelo sem pele tomate sem pele pitada de sal algum azeite gotas de limão quatro colheres de arroz quatro colheres de feijão dois filés de frango grelhado duas fatias pequenas de melão dois silêncios corretamente vestidos. Às vezes, no domingo, variações de cardápio.

Naquela tarde a aula foi diferente, não porque a professora sentou-se na última carteira da fileira ao lado da janela. O aluno da sétima série fez a chamada e anunciou o tema do dia:

O SENTIDO DA VIDA.

A classe dividiu-se nos subgrupos de sempre, em discussões profundas, contundentes.O grupo da professora

brilhou na exposição dos painéis, brilhou tanto que o trabalho mereceu conceito A. Quanto à professora, resignou-se a um D, por falta de participação.

Dulce tinha dois anos quando sua tia sofreu mais uma das tantas e tantas fraturas ao longo da vida, sem dúvida a primeira perante os olhinhos de Dulce. Fratura na perna esquerda, de tíbia e perônio, de repente uma perna dobrada ao meio, como que vazia de tudo. Meses e meses de gesso, muletas, andador, bengala... Quando, quase um ano depois, ensaiou seu passo reinicial com o pé esquerdo, Dulce, a pequenina, disse: “Dê a mão, titia.” E assim, guiada por ela, saímos as duas, de mãos dadas, para o reencontro com o mundo lá fora.

Eu cantava Lupicínio Rodrigues. Rubem, na última fileira da platéia, sabia que “Nervos de Aço” não estava sendo cantada para ele. Certamente, eu não pensava em Rubem, nem mesmo seria capaz de enxergá-lo ali, no fundo, me ouvindo cantar “Nervos de Aço” para Daniel, que não estava ali, que não poderia estar ali. Cantava para Daniel, mas não pensava em nada nem em ninguém. No palco, a sós, um violão “Nervos de Aço” minha voz.

Geraldo também entre os ouvintes, mas, ao contrário de Rubem, numa das fileiras próximas do palco. Também não podia vê-lo enquanto cantava “Flor Amorosa”, sua preferida: ninguém enxerga nada quando se encontra do lado de lá da platéia. Não via Geraldo, todavia, só a certeza de sabê-lo ali, meu amigo fiel, em amizade sobrevivida a tudo, ouvindo-me a cantar “Flor Amorosa”, modinha dos tempos de inocência, preenchia-nos com toda nossa infância e nossa juventude. Geraldo e Ana, que permanecem um dentro do outro rios profundos, há muito sem pedras pontiagudas nos respectivos leitos.

A mãe estudou até o 3° ano primário, como se dizia naquela época. Durante toda a vida viveu para as filhas, o marido, a casa; nunca leu um livro, a não ser os de receitas culinárias. Em verdade, leu o livro de poesias de Ana, não pela poesia, mas porque era de Ana. Após um ano na cadeira de rodas, um ano alijada de todas as tarefas próprias, pediu ao seu Anjo algo em troca do mundo perdido: nesta noite, no meio de um sonho, nasceu-lhe o primeiro, ultra-romântico versinho que, a partir da alvorada do novo dia, começou e continua a se multiplicar em rimas infantis e príncipes encantados com beijos tardios, mas ainda a tempo.

Observo as mãos de Cecília a prepararem uma torta: Inicialmente colhem, no armário, os múltiplos utensílios de diferentes tamanhos e espessuras nos quais será colocado, individualmente, cada ingrediente específico: sal, açúcar, fermento, óleo, palmito, farinha de trigo, os tomates escaldados em cubinhos sem pele, as ervilhas, os ovos... Depois, as mãos misturam tudo, com critério e amor, enquanto os ouvidos de Cecília ouvem, com atenção, os fragmentos de minhas múltiplas histórias, todas pretéritas – a mãe, no quarto, também conversa por dentro de si mesma, com os antigos. A torta começa a recender, as mãos de Cecília dispõem a mesa para o almoço. A casa inteira recende a som, movimento, alma, o mundo lá fora, quando Cecília é presença nela.

As tantas pessoas em volta pareciam não ouvir a Poesia gritando de dor, dor funda, do mais fundo das entranhas, dor aguda, de pânico, de agonia. Sobre as faces da Poesia, um suor gelado. Alguém via? A Poesia com a garganta fechada, sem voz, sem respiração, o sacerdote no quarto ao lado, a serviço de outro doente terminal. Minha amiga disse: “Vamos embora”. No bar, diante das taças púrpura, oramos por uma morte tranqüila para a Poesia e oramos por sua Ressurreição.

Fernando reaparece, após uma década. Na segunda metade dos anos 80, estudávamos Filosofia na PUC. Ele foi até o fim, eu não: abandonei tudo por solidariedade a Geraldo, que começou a apresentar todos os sintomas de uma das Pestes do nosso tempo. Não tinha a doença, só a síndrome dela, mas, até curarmos tal síndrome, meu navio filosófico teve tempo para naufragar por completo. Nome do iceberg? Ana, é claro.

Fernando e eu decidimos fazer um tour, como nos velhos tempos: Dois belíssimos bifes com fritas e cervejas preliminares no Sujinho; bar na Vila Madalena que, em nossa época, ainda não era o point de agora; por fim, boteco na Pompéia, para as saideiras.

Falamos dos respectivos naufrágios e das respectivas sobrevivências. Depois das tantas cervejas, nossos dedos quedaram-se a secar as lágrimas um do outro. Foi demasiadamente bom o reencontro.

Antigo apaixonado vem telefonando para minha mãe. Às vezes, se desentendem. Dia desses, após uma das brigas telefônicas, ela me relatou a seguinte fala dele: “Por que você é tão grosseira comigo? Sua mãe é tão delicada!”

Ada mal tem tempo para a Dulce e o marido, quanto mais para nós. Quando telefono, a pergunta: “Aconteceu alguma coisa?” Nunca sei como nem o quê responder, mas nos vemos com muita freqüência no Natal, na Páscoa, no Dia das Mães, no Dia das Crianças. Durante a Reforma aqui em casa, que durou três meses, nossa mãe ficou seis dias na casa desta minha única irmã: a segunda vez, em quase quinze anos. Quem sempre desconheceu quem?

Depois dos três anos na cadeira de rodas, paira sempre em torno de tudo a dependência emocional dela, infinitamente pior que a dependência física. Meu joelho direito desgastado, dívidas, úlcera, nódulos, medo enorme de cair, de quebrar outros ossos, pouquíssimo pecúlio para táxi; há um ano, aposentadorias e os votos definitivos de clausura, só atenuados pelas aulas particulares. Cecília, enquanto lhe é possível, me acompanha ao supermercado, ao pagamento das contas, a uns e outros tantos médicos... à farmácia. Vida demasiada para evocar... doer... Vida sem anestesia. Lembra-te dos sem-trabalho, sem-teto, sem-saúde, sem-família e jamais te esqueças de tua, Tua Mãe.

Às vezes, o Geraldo, o Fernando, três mosqueteiras amigas, me retiram um pouco daqui. Nestes anos, não mais que três vezes no espaço de doze luas completas, Rubem tem vindo me visitar e “ficamos”. Daniel... bem... de Daniel só devo dizer que nos falamos, como se tudo fosse normal. Como se, pois ainda hoje estremeço quando toca o telefone, sem contar que o tempo dos relógios jamais reconquistará, no meu reino, a coroa de Imperador.

Em maio do presente ano de 2009, reaparece um outro antigo amigo o qual, por necessidade de permanecer incógnito, atribui a si mesmo o nome de Omar de la Roca. Estamos escrevendo um livro comum, eu e o Omar, livro que, ora por intermédio da escrita dele, ora da minha, volta e meia despenca em ribanceiras, cai em lagos fundos, perde-se em florestas densas e aí a luta por resgatá-lo, a este livro escrito a duas mãos. E Daniel que, apesar dos todos mundos que nos separam consegue ainda saber-me por dentro dos meus pensamentos, como se um alterego de mim, sentiu a presença do Omar e o perigo que ele representa. Eu, para minha desdita, sei que nada nem ninguém tem o poder de ameaçar, para além de alguns poucos dias ou meses (quando muito), o reinado de Daniel.