Domingo sem traves

Lembro-me bem que foi num dia desses enquanto eu dormia e babava entre travesseiros, atrasado para vida. Os jornais já circulavam com a notícia pelas ruas do grande Recife e essa era a matéria: O Santa Cruz Futebol Clube - o tricolor do Recife que escorregou para a série de D do Brasileirão - só entrara em campo no Campeonato Pernambucano de 2010 depois de tomar um café fresco e descer do ônibus a primeira coisa que vi foi essa matéria numa banca de jornal, de imediato não me preocupei, pois li a nota rapidamente, porém estava apressado. Caminhava pela rua enquanto a ficha sacolejava na minha cachola. Segui as pressas para o trabalho e no intervalo de algumas esquinas. Comecei a imaginar os domingos sem o jogos do Santinha, sem sofrimentos ou ânsias de gol, porque quem torce para esse time sofre viu. É uma estranha relação entre amor e dor e não amor e ódio, jamais isso. Nenhum tricolor que se preze cultiva ódio pelo seu time. Torcer para o Santa é amar longos romances.

Quer dizer que os dias de Domingo vão perder seu paladar? Foi o que pensei. Nada de informação sobre o jogo pelos outros, detalhe, muitos quando vêem que o cara é tricolor aumentam o placar para o time adversário só para o cara se roer pelos cantos. Nada de bolas cheias de vontade, beijando a ferrugem da trave, nenhum olhar que saúda outro tricolor numa multidão de mil pessoas, nem os frangos cometido pelo nosso goleiro e nem as defesas dos goleiros adversários que nesse dia ficam com a gota e pegam tudo. Por um bom tempo não vamos ver os chutes errados de nossos atacantes. Nem os gols, porque quando o Santa faz um gol meu amigo, é um parto. Um parto que o pai comemora de um lado e o padrinho ver que o menino não tem nada haver com ele e comemora também. Quando fecho os olhos, fico revendo muitos dos gols que pude ver no estádio, ouvindo pelo rádio, vendo pela TV os lances que foram como um soco no fundo da rede. O pé do jogador refletindo o que ele quis dizer – toma aí porra - aí meu Deus desaba seu céu em comemoração e tudo quanto é rua, beco, morro, alto, subida, córrego, escadarias, maloca, bocada, ilha, jardim, prédio, edifício, conjunto habitacional, favela, periferia, bar, bodega, boteco, todos os corações de tricolores pulam de emoção. Conheço casos de homens que choram, beijam a vizinha na comemoração e levam uma surra por causa disso, te gente que pára no meio de uma foda para comemorar o gol, outros gritam bem alto comemorando o grande lance mesmo morando numa cobertura do último andar do edifício, tem aqueles batem o carro de emoção, os donos da vez pagam cerveja para todos os desconhecidos, os sortudos viram ricos por causa do bolão e tem gente que não agüenta e morre sorrindo com os olhos cheios de lembrança e o filme daquele dible e depois finalizando num golaço. Vão junto com as rosas para o sepultado.

Mas agora o tricolor de fora, o Estádio do Arruda vazio, os gritos fanáticos nos cantos da parede agora empoeirados. Todos os corredores são sombras contra luz. Arquibancadas sem seus pés amassando o firme concreto, as mãos batendo umas nas outras amando em delírio, veias tricolores pulsantes. O que será de nós? É o mesmo que dizer a um boêmio que a noite acabou e todos os bares irão fechar para virar uma igreja? O que será de nós? O Arruda, palco de tantas emoções deixou agora esse favor aos cadeados que trancam tudo e portões de ferro. Fechados para travessia de tantos sonhos. Tudo por causa dessa má temporada. Agora só o de lá de cima saberá quando nosso peito encherá novamente de explosões de euforia. A previsão é só ano que vem. Até lá vou ficar doente.

Andando de um canto a outro dentro de casa nesse primeiro domingo sem futebol no Arruda, esses são os primeiros sintomas graves de abstinência, perguntava para mim mesmo de frente ao espelho, o que eu devo fazer? Devo ter andando vinte quilômetros de um canto a outro dentro de casa então comecei a uma lista de pendências minhas para com esse ano. Vi as quais eu resolvi e outras que estão se embolando pelo caminho e aí vai à lista:

- Finalmente realizar aquela cervejada que prometi a turma de domingo sob aos meus comandos na hora de assar o tira-gosto;

- Terminar alguns romances que eu estava lendo e outros livros, antes de ganhem habitações de aranhas sem teto;

- Dizer a uma moça de Arcoverde que amo ela e quero viver com ela e que irei escrever uma biografia contando nosso lindo caso de amor. Esse livro vai vender milhões e nos tornar ricos;

- Tenho que visitar alguns parentes um deles é minha mãe;

- Preciso ver mais a vida como ela, não o filme, e sim as grades e abraços que me cercam. Preciso ser mais amigo;

- Tenho que sorrir mais já que estou escovando os dentes três vezes ao dia;

- Preciso lavar minhas meias, meus sapatos, shorts de joga bola e arrumar a casa, principalmente meus livros.

- Terei que pedir perdão a um velho inimigo pela surra que me deu, briguei horrivelmente;

- Tenho que dizer ao meu sobrinho com a extrema urgência que extraterrestres existem mesmo. A há vários planetas para eles;

- E por último e mais importante, preciso ver o por do sol nu.

Tenho tudo isso para fazer mais bem que 2010 poderia, ser agora ou amanhã ou daqui para dez minutos como um download desses que baixamos pela internet – baixe o futuro aqui – assim seria o anúncio, alguns kibites existências e puft. Aí estava 2010 e o Santinha novamente em campo ainda por cima com o uniforme novo. Puxa como é bom sonhar. E os domingos voltariam a ter os hinos enganchados nas bocas de mais de um milhão de tricolores espalhados por aí. E esse hino não seria cantado como uma canção nova da rádio e sim como um grito que acordará a cidade. Esse grito será devido ao nosso silêncio nesses meses que passaram onde nossa boca ficou tapada. E no peito cabeludo, depilado, malhado ou fuleiro de um machão e nas grandes mamas e em pequenos peitinhos de pitanga, homens e mulheres, meninos e meninas, papagaios e cachorros, mortos e pacientes em coma. Todos os tricolores unidos formaram uma só boca gritarão: tri-tricolor tri-tri-tricolor Santa!

Aldemir Suco
Enviado por Aldemir Suco em 18/08/2009
Código do texto: T1760657
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