Marcelino Pão e Vinho

Recebi, pela Internet, esse fac simile do cartaz original de "Marcelino Pão e Vinho", filme do qual os mais novos não tenham talvez ouvido falar.Eu era bem pequena, e ia assistí-lo,repetidamente, no Cine Rex, cinema da Rua Duarte de Abreu, no Bairro Mariano Procópio, em Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil.Para minha sorte, papai era apaixonado por cinema e pagava minha entrada com gosto.

Eu chorava muito, comendo as pipocas do Condé, o pipoqueiro que reinou soberano em frente , vendendo pipocas sem piruá e com lascas de queijo parmezon, que fritava , deixando-as crocantes e misturava ao milho estourado, tão branquinho...O cheiro era inconfundível.Crescíamos e lá íamos, com os namoradinhos, comer a pipoca diferente...Condé nos tratava com a maior cortesia,Disfarçava quando acabávamos um namoro e se nos via tristes, colocava uma lasquinha a mais, de queijo...Casei, mudei e toda vez que ia lá, encontrava a delícia.Por sinal, vendia balas também:caramelos caseiros deliciosos...

Marcelino era um meninozinho criado por uns monges...Descobre Jesus, sua imagem, no sótão e vai alimentar o Cristo da paixão...

Um frisson coletivo,essa história.Fizeram álbuns de figurinhas-e papai, que sempre me permitia colecioná-las- saía atrás das difíceis, promovendo trocas, comprando as raras, pois eu era tímida, não saía muito à luta...

Havia também a música:

"Marcelino pega a toalha,

o sabão-e vai se lavar...

come come muito,

como frei Donato,

limpa todo prato,

come muito pão"(...)

Parte desse pão, a criança usava para alimentar o belo moço ferido...O vinho, matar-lhe-ia a sede...A história atingiu em cheio todo mundo, na época em que chorávamaos à bessa com situações inocentes, sem parecer piegas.Agora, a ver o cartaz do filme antigo, rememoro-me.Revejo o bairro, a rua, onde, aos oito anos, eu era posta, pelo Professor Afrânio, sobre um banquinho, para fazer longos ditados de palavras "difíceis" ao quadro negro, para chatear os moços do ginásio, ao escrever bem certinho, com giz:"Estão vendo, zombava ele, essa menininha do segundo ano primário, como sabe escrever?Que vergonha para vocês"!Nada jamais deixou-me tão constrangida, como se em vez de estar sendo elogiada, eu fosse criticada.Temia que os grandes me odiassem...Quando ele aparecia e requisitava-me na porta da sala de aula, meu coração fremia.Será que por isso suspeitam que eu tenha a "Síndrome do Coração Partido"?Ameaçam-me,os médicos, a sorrir, com uma tal de ablação, com cauterização, o que venho adiando desde os anos noventa...

Todas as regras de ortografia, aprendi com papai, escrever cartas

certinhas, com mamãe, uma grande missivista e o condicionamento, vinha das muitas leituras, pois jamais parei de ler, desde que aprendi,aos três anos, quando morava na fronteira com a Colômbia( em Japurá, na Amazônia)...

Ao rever o "cartaz original"encanto-me, emociono-me,vejo-me naquela época feliz em que eu tinha uma gente grande que realmente cuidava de mim:papai, que tem oitenta e cinco anos e mamãe, que me ensinava a declamar a história da linda Rutinha que pegava algodão, esparadrapo, para curar o mesmo moço bonito e machucado, a dizer:

"-Veja, mamãe:curei todo o dodói de Jesus!"

Morta em acidente,ela, que era enfermeira, deve também estar a cuidar de todos os dodóis que encontrar nas gentes de outra dimensão...

( em 14/04/2005)