O Trem da Terra dos Marechais - Tchello d'Barros

O Trem da Terra dos Marechais

“A única maneira de não perder o trem é perder o que vem antes dele.”

G. K. Chesterton

Em pleno 2008, já com saudades da Oktoberfest, estou novamente dentro de um alfarrábio. Este é o nome com que os alagoanos chamam os tradicionais sebos, repletos de livros usados, nas ruas próximas à CBTU, a estação de trens de Maceió. Nas mãos, um exemplar de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, o autor alagoano nascido em Quebrangulo. Folheando o livro para ver se ali encontro as gravuras do cearense Aldemir Martins, que teriam sido impressas na edição original, acabo por lembrar que há pouco encontrava-me em Blumenau, por ocasião do Encontro Internacional de Literatura Lusófona. O evento, organizado pelo incansável Luiz Eduardo Caminha, foi uma promoção do portal literário Cá Estamos Nós, do escritor português Carlos Leite Ribeiro, que há mais de uma década mantém uma bela amizade com os autores da loura cidade do Vale Europeu.

Entre outras peripécias culturais, minha presença no evento deveu-se principalmente pela apresentação de minha exposição de Poesia Visual intitulada “Convergências”, que nessa edição ocorreu no Viena Park Hotel, local da realização do referido evento. Na ocasião, acompanhado pelo escritor pernambucano Luiz Alberto Machado, tratamos de visitar o alfarrábio, digo, sebo, da cidade, o Book Center, onde o Nilto nos recebeu com a simpatia de sempre e lá encontramos livros de vários membros da Sociedade Escritores de Blumenau, incluindo as coletâneas que editei para essa instituição literária, Um Rio de Letras e Espelhos da Língua. Numa boa caminhada pela Rua XV de Novembro, a rua da linguiça, meu colega ficou impressionado com a arquitetura no estilo Enxaimel, com a beleza das blumenauenses, of course, e até mesmo com a estrutura da Ponte de Ferro, onde antigamente passava o trem de Blumenau. Após degustarmos um chope no Biergartem e visitarmos obras de minha querida e saudosa amiga Elke Hering, na Fundação Cultural, participamos com outros escritores de um sarau poético, o Valentinestag, na biblioteca Fritz Müller, um de meus locais afetivos na cidade. E dias depois, voltando ali, deparo-me com uma bela exposição iconográfica sobre a vida e obra do autor de Vidas Secas. Gostei muito, embora eu duvide que, numa equivalência cultural, a biblioteca de Maceió realize uma exposição sobre a vida e obra do catarinense Cruz e Souza.

Uma semana mais tarde, aí estamos em Maceió, circulando entre os alfarrábios, perguntando sobre obras de autores alagoanos. E assim chegam-me às mãos o clássico Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, o poeta e artista plástico nascido na mesma União dos Palmares do quilombola Zumbi. Inevitável lembrar que o autor do poema Nega Fulô era sempre recomendado pelo poeta Lindolf Bell em nossas conversas sobre literatura brasileira. Na calçada dos surpreendentes quiosques-sebos, à sombra da Assembléia Legislativa, encontro um exemplar do emblemático Ninho de Cobras, romance do maceioense Lêdo Ivo, em prosa poética, que reputo como um dos mais interessantes livros escritos em nosso idioma. Não adquiri o exemplar, pois já possuo um volume, devidamente autografado pelo autor, um livro lindo, lido, relido e trelido. O vendedor não sabia que Lêdo continua vivo, com seus lúcidos oitenta e cinco anos, radicado no Rio de Janeiro. E após recusar algumas publicações de poetastros contemporâneos, tive a agradável surpresa de me deparar com um exemplar de instigantes poemas galantes de Marcos de Farias Costa, que é também proprietário de um alfarrábio, o seletivo Dialética.

Munido com as novas aquisições literárias, dirijo-me finalmente para a CBTU, a fim de garantir meu bilhete de passagem para uma viagem de trem para a cidade de Rio Largo. Antes de chegar, passo pelos intermináveis muros laterais da própria estação e ei-los completamente tomados de poemas pintados, projeto de décadas atrás, sendo que a maioria dos textos já está ilegível pela ação do tempo e das intempéries. Mas ainda é possível ler o curioso poemeto de uma certa Rosiane Rodrigues, que nos conta que “a teia do anjo/ à deriva do tempo/enrosca a nave/do desejo”. Defronte à estação, degusto um caldo de cana gelado e depois de uma última visada nas águas cor de berilo da Praia da Avenida, adentro a estação, passando pelas inusitadas esculturas formadas com pedaços de trilhos e dormentes, representando elementos do folclore alagoano, como as danças de Guerreiro e Pastoril.

Já de bilhete em mãos, circulo pelo corredor, tomado pelos passageiros que serão levados às cidades-dormitório da região metropolitana de Maceió, compondo um roteiro de 32 km, culminando em Lourenço de Albuquerque. Após passar pelas catracas, chego às plataformas de embarque, com suas dezenas de colunas quadradas, onde numa das edições da tradicional festa rave Substation, essas colunas receberam plotagens de dois metros de altura, com meus poemas da série Ideogramas, do livro Olho Nu, na coleção Poesia de Santa Catarina, leia-se Péricles Prade e Fábio Brüggemann. Os poemas neoconcretistas ficaram por cerca de um mês nessas colunas, e era interessante ver os milhares de estudantes que circulam diariamente na estação, anotando os poemas em seus cadernos, fotografando com celulares e até mesmo tentando decorá-los. Mas naquele momento não havia poema nenhum, a não ser os dos livros que eu carregava. Como que para me acordar do devaneio, o maquinista apitou o sinal para embarcarmos.

Os vagões coloridos externamente com motivos do Nordeste, da locomotiva Nordestina, entram em movimento, e assim logo passamos por um dos trens que mais chamam a atenção na estação, a Brasileirinha, toda pintada com berrantes tonalidades de verde e amarelo. E mais adiante passamos pela Estrela Radiosa, uma locomotiva toda pintada em vermelho, branco e azul, as cores heráldicas da bandeira alagoana. Vou me abancando no vagão, quase cheio, com os bancos ocupados principalmente por moradores dos bairros da cidade por onde os trilhos passam. Um senhor, sentado à minha frente, reclama com o amigo sobre o juiz ter roubado no clássico entre o CRB e o CSA, principais times de futebol desta que é a terra da maior jogadora de futebol do mundo, a Marta. Dois rapazes de óculos, mais ao lado, creio que fossem professores, discutiam qualquer coisa sobre a proclamação da república, pois a mesma foi proclamada pelo alagoano Marechal Deodoro e consolidada pelo também alagoano Marechal Floriano. Voyeur auditivo, tentei ouvir a conversa de duas senhoras de aspecto bastante religioso, com bíblias em punho, cabelo em coque e saias muito compridas. Sei apenas que comentavam algo sobre o filho do Collor candidatar-se a prefeito na cidade de Rio Largo, ou algo assim. No banco de trás, duas morenas vistosas e sorridentes tricotavam trivialidades, era um papo sobre culotes, estrias e celulites, tema universal da natureza feminina.

De repente o trem começa a apitar diversas vezes seguidas, e uns garotos no vagão correm em algazarra para as janelas, atiçando minha curiosidade. É o aviso de que, ainda em Maceió, estamos chegando à Feira do Passarinho, que por acaso é tema de um de meus cordéis, e no caso, sob os avisos do trem, os feirantes que tem suas mercadorias nos nichos entre os trilhos tiram apressados os produtos, numa correria, para que o trem possa passar. A garotada fazia a maior gozação com os feirantes, que xingavam de volta e assim que o trem passa, em questão de segundos lá estavam sobre os trilhos os produtos novamente, relógios usados, celulares de procedência duvidosa, ferramentas variadas, CDs piratas e artigos nessa linha. Nessa linha do trem. Em seguida, após passar por outros bairros como o Bom Parto, Bebedouro e Sururu de Capote, logo chegamos à estação de Fernão Velho, região bonita, onde por um bom trecho do percurso, a locomotiva margeia a imensa lagoa Mundaú. E assim, segue seu destino passando pelas estações de ABC, Rio Novo, Satuba, Utinga, Rio Largo e finalmente Lourenço de Albuquerque. O itinerário foi pontuado por diversas vilas, fazendas, paisagens verdejantes e as inevitáveis plantações de cana-de-açúcar. As usinas e antigos engenhos são parte do cenário, onde o destaque fica também por conta das próprias estações ferroviárias, muito antigas, já que se trata de uma via férrea centenária.

A viagem transcorreu com tranqüilidade, e os passageiros de meu vagão iam sendo aos poucos trocados, como que substituídos, desciam alguns, entravam outros. Chamou minha atenção o fato de haver guardas armados no trem. Um deles me contou que é uma medida de segurança para os usuários, e me apontou vilas onde vivem famosos pistoleiros da região e mesmo uma fazenda que havia sido tomada certa vez pelo bando de Lampião, que aterrorizou muito por essas bandas. Embora o moço trabalhasse há pouco tempo na função, disse não lembrar de notícias sobre acidentes ou descarrilhamentos. Isso me lembrou uma história de trens que me foi contada pelo poeta Jairo Martins, de Blumenau, quando de suas andanças pelos Andes. Num certo trecho, no Peru, houve um acidente no trem em que ele estava, ficando a locomotiva dependurada em uma ponte. Fiquei imaginando a cena ilustrada pelo fenomenal artista Telomar Florêncio, outro confesso apaixonado por trens. Só que numa pintura do Telomar, esse trem já levantaria vôo, e lá de cima veríamos os enigmáticos desenhos do deserto de Nazca ou as ilhas flutuantes de Los Uros, no lago Titicaca, já que nada é impossível quando se trata da pintura desse artista.

Estava viajando nesses delírios, quando me avisam que chegamos a meu destino, Rio Largo. No entanto essa seria a penúltima estação, pois a derradeira seria a de Lourenço de Albuquerque, cidade colada na outra. Assim, resolvi ir até a estação final. Apesar do roteiro relativamente curto, a pouca velocidade do trem fez com que a viagem durasse cerca de uma hora e meia. Apenas desci e caminhei um pouco pelas ruas centrais da cidadela, provando uma água-de-coco gelada. Em pouco tempo, já estava no perímetro de Rio Largo. Trata-se de uma cidade antiga, que parou de se desenvolver e apresenta muitas ruínas dos tempos áureos dos grandes engenhos. O rio Mundaú, corta a cidade e daí a nominação. Flanar pela animada feira de rua, pelas ruínas e igrejas da cidade foi a atividade desse dia, já que não havia nenhum compromisso ali, apenas uma boa desculpa para uma viagem de trem. Num restaurante da rua central, provei uma tradicional carne-de-sol com macaxeira cozida, temperada com manteiga de garrafa. No acompanhamento, feijão-de-corda e queijo-coalho. Para beber optei por um suco de cajá.

Zanzando pela cidade, obrigação de viajores, peregrinos, vagabundos e curiosos como eu, tive oportunidade de conversar com vários cidadãos, sempre atenciosos e simpáticos, de um jeito que só os nordestinos sabem ser. Meu sotaque catarinense, estranhíssimo para os nordestinos do chamado Brasil profundo, fez com que, ao final de um bate-papo com um senhor numa praça, antes de me despedir, ele me perguntasse de que país eu era... Eu sabia que ali, teria sido uma das regiões onde os índios Caetés foram dizimados, por conta do episódio histórico do Bispo Sardinha, que teria sido canibalizado por eles, segundo alguns historiadores de índole questionável. Sabia também que os Batavos teriam tentado invadir a cidade no período de ocupação holandesa, comandada pelo alemão Maurício de Nassau. Então, minha curiosidade histórica era se o alagoano Calabar, traidor para uns, herói para outros – inclusive para este cronista – teria participado das batalhas ali na região. Ninguém soube responder isso, pois não há evidência escrita de sua passagem por ali, o que não impede que muitos o considerem o primeiro herói desse país. Mesmo assim, ele é muito mais valorizado, digamos assim, na Holanda que por aqui, mesmo caso de minha heroína preferida, a catarinense Anita Garibaldi, que na Itália tem até estátua.

Elucubrava essas divagações quando me dei conta de que era hora de me dirigir para a estação a fim de voltar para a capital alagoana. Já devidamente abancado no vagão, uma última visada nas casinhas de alvenaria, enfileiradas em suas cores alegres, me fizeram lembrar de umas fases do pintor Volpi, que retratou tão bem essas fachadas coloridas de casas do Nordeste. Compro um picolé de tapioca – sim, isso existe! – e reencontro o guarda do trem. O mesmo me convida para refazer o percurso durante o período das festas juninas, quando se realiza o projeto Trem do Forró, onde os vagões são decorados com bandeirinhas coloridas e os autênticos trios forrozeiros transformam os vagões em espaços de dança, folclore e muita festa. Tá anotado. No retorno, já contemplando o crepúsculo refletindo-se nas águas plácidas da Lagoa Mundaú, rememoro outra viagem de trem, menos tranquila, no percurso de Bruxelas para Amsterdã. Estava euzinho ali, vendo se na paisagem dos países baixos apareceria algum moinho, quando depois que estávamos já abaixo do nível do mar, entram alguns policiais no vagão, dão uma boa olhada nos passageiros e então, com um imenso cachorro preto, o grupo vem direto em mim e me convidam para acompanhá-los num vagonete para revista. Revistaram minha roupa e bagagem e fizeram o cachorrão me farejar e depois farejar minha bagagem, conferiram meus documentos, fizeram anotações, me entrevistaram sobre quem eu era, de onde vinha e para onde ia. Fizeram um questionário e tanto, só faltou perguntar se eu preferia rollmops ou caldinho de sururu. Ao final, desculparam-se e explicaram que esse é um procedimento padrão para coibir o tráfico de drogas na região, já que na Holanda há uma grande tolerância para o uso de várias drogas. Então perguntei porque vieram logo em mim, e um deles disse que é porque eu tinha um tipo latino e podia muito bem ser um colombiano traficando. Ao final me desejaram boa-viagem e que eu aproveitasse bem a capital dos batavos.

Antes de chegar na estação final em Maceió, releio algumas páginas de Vidas Secas, apesar do leve balanço do trem. Noto que aquele universo árido do personagem Fabiano é muito diferente da recém visitada Rio Largo e mais ainda da cosmopolita Maceió. E daí? Daí que assim como um dia, este ocasional escrevinhador, esteve dentro de trens, alfarrábios e bibliotecas, hoje este texto está dentro de uma tela de computador e um dia estará dentro de um livro. E mais adiante, quiçá, dentro de um sebo ou alfarrábio...

Tchello d’Barros

www.tchello.art.br

Tchello d Barros
Enviado por Tchello d Barros em 16/08/2009
Código do texto: T1756637
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.