O Trem da Serra do Mar - Crônica de Tchello d'Barros

O Trem da Serra do Mar

“As estações ferroviárias são a porta para o glorioso e o desconhecido. Através delas mergulhamos na aventura. Através delas, infelizmente, voltamos.”

E. M. Forster

O poeta Bashô viveu no Japão medieval do século XVII e seus biógrafos divergem um pouco sobre ele, mas parece consenso que exerceu várias atividades, tendo sido além de samurai, um professor erudito, e mais tarde um monge zen. Para além dessas questões, notabilizou-se por percorrer à pé longas distâncias pelo país, de aldeia em aldeia, onde divulgava seus haicais, uma forma de poema que na época era praticada apenas pela nobreza dos shogunatos. Assim, esse poeta andarilho tornou popular essa forma sucinta de poema, sendo que séculos depois se espalharia pelo mundo, tendo sido trazida para o Brasil, há quase um século pelo poeta Guilherme de Almeida. Hoje é praticada mesmo na germânica cidade catarinense de Blumenau, onde, apenas como referência, podemos citar poetas como Martinho Bruning, Edith Kormann, Nassau de Souza, Tchello, Terezinha Manczak, Isnelda Weise, Margit Didjurgeit, entre outros. Bem, o fato é que Bashô escreveu certa vez que eventualmente sentia um certo formigamento na sola do pé, prenúncio de uma necessidade interna de viajar, de andar pelo mundo, de descortinar horizontes.

Parece que essa é uma necessidade atemporal do ser humano, mesmo em nosso ocidente contemporâneo e digital, vez em quando não há quem não sinta sua bússula interna apontar a agulha para algum ponto do mapa. Mas nem sempre é preciso atravessar oceanos ou desabalar-se para países distantes ou destinos exóticos, para se ter uma boa experiência de viagem, pois muitas vezes lugares e experiências interessantes estão mais perto de nós do que imaginamos. E foi assim que, aí pela virada do milênio, decidi passar um fim-de-semana na bela Curitiba, para conferir um pouco das inovações ecológicas da cidade onde morei quando criança. Cidade também de haicaístas, como Alice Ruiz, Andréa Motta, Helena Kolodi, Jiddu Saldanha, Marilda Confortin e Paulo Leminski, o cachorro-louco. Mas não bastava andar pelos parques e praças da capital paranaense, ou curtir a intensa programação cultural da cidade. O objetivo era também fazer um trajeto de trem pela Estrada de Ferro Paraná, atravessando a fantástica Serra do Mar e, de quebra, degustar um prático típico da região. Para tanto, o trajeto escolhido foi o de Curitiba até a cidade de Morretes, famosa por sua culinária típica, onde o destaque é o Barreado.

Cedinho, após me fartar com uns deliciosos pastéis coreanos com café em copo de vidro, algo bem curitibano, nas imediações da estação de trens, tento matar o tempo com a leitura dos haicais de Jorge Luis Borges. Me chama a atenção o fato de que, se o haicai clássico possui desessete sílabas poéticas, então Borges, que era chegado em matemáticas e simetrias, escreveu exatamente desessete haicais. Por volta das oito horas da manhã, tem início a viagem, uma viagem de trem. Outra viagem de trem. Ainda que se possa fazer o mesmo trajeto de ônibus, e que o trem em questão tenha sido adaptado para um projeto turístico, havia pessoas no meu vagão que estavam ali na condição de passageiros comuns, vieram cuidar de afazeres na capital e apenas estavam voltando para casa, em Morretes ou Paranaguá. E não custa lembrar aqui que a viagem pode ser extendida até a cidade portuária de Paranaguá. E dali para a idílica e romântica Ilha do Mel é questão de apenas embarcar numa balsa, mas essa é uma viagem que recomendo para que se faça em ótima companhia, preferencialmente sob os eflúvios do Cupido.

Trem andando, paisagens desfilando. É assim o tempo todo nessa experiência que tem aspectos históricos, políticos, geográficos, climáticos e culturais. Uma guia de turismo que acompanha o povo durante o percurso vai logo avisando que no trajeto de ida é melhor escolher os lugares do lado esquerdo do vagão, para poder melhor desfrutar da visão das paisagens. A moça faz uma apresentação do projeto turístico e complementa com informações diversas sobre a ferrovia, a Serra do Mar e aspectos interessantes das cidades do trajeto. E assim segue a viagem, onde aos poucos a capital vai ficando para trás e vamos nos acostumando com o suave balanço do trem e nos assombrando com as belezas dos campos da região. Logo o relevo vai ficando mais acidentado e vamos aos poucos adentrando na cadeia de montanhas, com subidas, descidas, curvas e movimentos que são de tirar o fôlego de alguns passageiros. Sem falar no medo de alguns pelo fato de o trem em certos momentos rodar sobre trilhos que literalmente estão à beira de abismos, dos mais assustadores, onde a impressão que se tem é que o trem está voando. Não falta quem compare a experiência à uma imensa montanha-russa que roda num cenário natural, ladeado por picos de um lado e rios de outro.

E assim segue a viagem, entre um e outro sobressalto de algumas turistas mais entusiasmadas. Ao se passar por pequenos povoados pode-se ver também um pouco do modo vida daquelas populações de descendentes dos imigrantes alemães, italianos, poloneses e ucranianos que povoaram a região. Chamou a atenção nas imediações de um vilarejo, a placa de um bar, o Bar dos Canalhas. Ao menos é o que dizia a placa. É pena que o trem não tenha parado por ali! Mais adiante, o que alguns consideram como o ponto alto da viagem, a travessia de um túnel, onde ao final, o mesmo termina numa curva diante de um precipício. Ocorre que de dentro do trem, como não se pode ver os trilhos à frente, a sensação que se tem é de que o trem ao sair do túnel irá despencar no abismo, ou sair voando, então imagine o alarido de algumas passageiras desavisadas! Passado o susto, todos voltam a se maravilhar com as deslumbrantes paisagens de verde vivo e céu azul.

Alguns anos depois eu lembraria desta viagem num trajeto similar em alguns aspectos. Estava no trem que faz o percurso de Águas Calientes até Cuzco, no Peru, algo em torno de oitenta kilometros. Águas Calientes é uma cidadezinha que fica aos pés da montanha de Machu Picchu, e dali, após ter feito à pé a Trilha Inca, de quatro dias, até o santuário sagrado de Machu Picchu, retorna-se de trem para Cuzco, bebericando um tradicional chá de coca, que é a coisa mais comum por lá e só faz bem. O itinerário passa também pelo Vale dos Reis e tem paisagens magníficas, que naquele momento me lembraram a inesquecível Serra do Mar paranaense.

Finalmente chega-se à pequena e pacata Morretes, cujo povo orgulha-se do lema da cidade - Morretes: sua natureza é encantar! De fato os morretenses além de simpáticos e atenciosos tem sua pequena e tranquila cidade cercada por aquelas montanhas todas, e a gente sente na hora a diferença do ar puro da região. Após um passeio pelas principais ruas e praças, visitei o espaço cultural da cidade, com biblioteca, exposição de arte e até um espaço para escritores pernoitarem quando ali forem lançar algum livro.

Na seqüência encontrei um bom restaurante onde servem o tradicional Barreado, prato que os paranaenses herdaram dos açorianos. Consiste num cozido de carne que leva em torno de 24 horas de cozimento, com o vapor vedado, até que a carne se desfia e forma um caldo delicioso, servido com arroz, farinha especial e bananas, tudo acompanhado de um aperitivo de cachaça artesanal de banana. Da sacada do restaurante, a paisagem se completa com a imensa árvore flanboyant refletindo no riozinho que corta a cidade, um haicai. E mais ao fundo o desenho sinuoso da linha do trem, que ao voltar de Paranaguá, me levará de volta para Curitiba. Ao degustar a sobremesa com laranjas naturais, medito sobre essa estranha coceira na sola do pé, e que ataca gente do Japão medieval e gente de aqui e agora. Assim não dá pra não lembrar de Leminski quando nos avisa que “a viagem que não fiz, dói dentro de mim, como a raiz de uma árvore sem fim.”

Tchello d’Barros

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Tchello d Barros
Enviado por Tchello d Barros em 16/08/2009
Código do texto: T1756636
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