Boca Seca
Boca Seca
Madrugada. Acordei de súbito. Não por causa de um pesadelo ou um bom sonho, mas simplesmente acordei.
No quarto havia grande escuridão, como de costume naquela hora da noite. Sentei-me na cama. Meus pés, ao tocarem o chão, se encolheram. O piso de mármore estava gélido.
Ainda sentado, senti que algo estranho havia com a minha boca. Toquei-a com os dedos, indicador e médio, da mão direita. Senti um calafrio no estômago. Logo, o dedo polegar também começou a analisar os lábios. O calafrio pareceu-me ficar mais intenso.
Com as luzes do quarto apagadas, pois não quis acordar meus pais, andei depressa em direção ao corredor. Saindo do quarto, passei pela sala, desviando-me de um dos sofás. Cheguei à porta de entrada do corredor e passei por ela. Até chegar ao destino que eu queria, pareceu-me uma distância quilométrica. Meus pés, desprotegidos do frio, acostumaram-se rapidamente com a temperatura e não mais encolheram.
Apertei o interruptor. Logo, o corredor tornou-se iluminado pela parte do circuito elétrico que foi restabelecida. Fechei e abri os olhos lentamente para acostumá-los à luz. À minha esquerda, e um pouco à frente, havia um espelho de um metro de cumprimento e cinquenta centímetros de largura pendurado na parede. Avancei dois passos e me virei para o lado esquerdo. Fixei meus olhos no espelho. Ele fitou-me do mesmo modo. Minha pupila dilatou. Não podia acreditar no que aquele espelho maldito tinha como reflexo. Minha boca estava tão seca quanto um sertão. Vi poeira se fixando em meus lábios. Senti gosto de nada.
Quis cuspir, mas não havia líquido algum segregado por minhas glândulas salivares. Que saudade da minha saliva insípida eu senti naquele momento!
Senti falta do gosto de mel, do gosto de uva. Senti falta do gosto de açúcar, do gosto de beijo molhado. Senti falta do gosto de jiló, que eu sempre detestara.
Com essa falta de tantos sabores diferentes, percebi que a minha vida estava como minha boca, completamente seca. Uma vida vivida sem sabores, sem amores, sem ideais, sem paixão, sem tesão, sem alma.
Diante de tanta tristeza refletida naquele espelho, uma gota de lágrima foi expelida pela glândula do meu olho direito. Aquela gota deslizou lentamente por minha face, até atingir meu lábio superior e se dissipar.
Percebendo que meu lábio estava molhado, toquei-o com a ponta da língua. Senti-o salgado. Não poderia imaginar que o gosto da minha própria lágrima me causaria tanta felicidade.
Chorei... chorei... chorei... e era como se eu estivesse renascendo. Chorava e saboreava meu choro. Aquele choro tinha gosto de transformação. De uma nova vida. Nova alma.
Sem mais lágrima alguma para degustar, voltei ao meu quarto e me deitei. Ao fechar os olhos, e antes de permanecer em estado inativo temporário da vontade e da consciência, sorri levemente.
No dia seguinte, despertei de um longo sono. Sono este que eu dormia desde a puberdade. Comecei a sorrir. Aproveitei bem a vida e degustei todos os sabores que ela pôde oferecer-me.
Por: Daniel Passos