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O que é uma casa,senão a soma de suas memórias?

Vivi três vidas e,quem sabe, estou prestes a começar a quarta.

Da primeira me lembro muito pouco: pisos azul-turquesa,ajulejos rosa-choque,cômodos vazios, portão baixinho e quebrado.E um silêncio sem fim.

De repente,pedreiros quebrando e reconstruindo,aumentando meus quartos. Eletricistas.Pintores.Muros altos.Móveis escuros.Livros,livros,livros.E um bebezinho de quinze dias que chorava muito!Várias empregadas: umas vinham,olhavam e não voltavam.Outras ficavam e cuidavam dos dois meninos,que cresciam risonhos e espertos.Eu me sentia feliz com tanta algazarra.E quando chegou Dóber, o primeiro cãozinho,foi uma festa!O casal brigava e se reconciliava.Amigos e amigas enchiam minhas salas com suas risadas.Os meninos,depois de adolescentes,todos os sábados à tarde tocavam rock na garagem.Os vizinhos ranzinzas telefonavam xingando e os simpáticos aplaudiam das varandas dos seus apartamentos.Parentes visitavam-nos: avó materna,falante,gostava de cozinhar. Avô materno,quieto e observador.Avô paterno,trabalhador: o que tem aí que precisa de conserto?Avó paterna,risonha: quem quer aprender a bordar? Tios,tias,sobrinhos,sobrinhas,era um fervilhar.Durante quinze anos Luísa comandou tudo: casa,cozinha, os patrões.Só não conseguiu com os adolescentes,é claro.Me deixava brilhando e cheirosa e brigava com quem tirava alguma coisa do lugar e não guardava depois.Luís Gustavo fez vestibular e aos 17 anos foi estudar em São João del'Rei e depois se transferiu pra Uberlândia. Carlos Henrique,três anos depois,foi estudar em Uberlândia também.Eu me deprimi,sentia falta das brigas, das conversas,das músicas.A mãe chorava no banheiro,escondida.O pai trabalhava,trabalhava.Síndrome do ninho vazio,dizem.

Há mais de vinte anos sem reformas,eis que minha terceira vida me pegou de surpresa:pedreiros,pintores,eletricistas de novo. Derruba aqui,levanta dali. Em menos de um ano fiquei novinha em folha.E então aconteceu: meus donos se divorciaram.( tudo tem início,meio e fim,não é?).Lucimar ficou morando no apartamento debaixo( sim, eu sou duas,esqueci de contar esse detalhe) e Maria Neusa na casa, que encheu de móveis novos,amigas, livros e risadas.Duas alegrias: o nascimento do neto Yuri e Carlos henrique e Iara,juntos e aprendendo a felicidade.

Inesperadamente um fio se rompeu( seria o da sanidade? ) e toda a estrutura desmoronou.Maria Neusa foi passar Natal em Divinópolis e não voltou mais.Eu fiquei fechada um ano,remoendo: onde foi que eu errei?

O caminhão com a mudança acabou de sair e me sinto nua e desprotegida.

E cheia de dúvidas: terei uma quarta vida? Terei novos donos? Como serão? Estou ansiosa:vivo,respiro,espero - sentimentos tão humanos e que se entranharam em minhas paredes.

Fevereiro de 2009

maria neusa
Enviado por maria neusa em 11/08/2009
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