Crônica de uma noite sem luz
As velas fazem sombras trêmulas na parede. Lembro-me de minha infância, quando as quedas de energia eram freqüentes e demoradas, e o estoque de velas e fósforos sempre à mão fazia sentido. E agora, numa noite particularmente escura de um dia impreciso, neste século da informática, da fibra ótica, da robótica... estamos novamente sem luz.
Meus filhos querem navegar na internet, querem assistir à televisão, querem jogar videogame. Eles não têm a cultura da penumbra da minha infância. Acabar a luz não chegava a ser desastroso, pois íamos à rua ver as estrelas no céu. E adivinhávamos, na parede da sala simples, a pomba voando, o macaquinho comendo banana, o cachorro latindo, o velhinho de chapéu e óculos... O repertório era quase sempre o mesmo, mas também o era o encanto do teatro de sombras que meu pai fazia ali, sob a luz das velas.
Então escrevo à mão num caderno, com essa caligrafia esquecida de quem precisa de óculos especialmente agora, que a luminosidade é pouca. Talvez na penumbra eu consiga enxergar melhor as entrelinhas, as pequenas chamas semimortas em meu interior e a luz baça refletida à soleira da porta – há uma linda lua cheia esta noite e a escuridão é certamente menor do lado de fora. Os olhos aos poucos se acostumam.
As velas que parcamente iluminam o caderno onde agora escrevo estão se acabando. Notei que não tenho, como minha mãe, um estoque de compridas velas brancas, daquelas que duravam o tempo necessário até que a energia elétrica fosse restabelecida. Utilizo-me de pequenas velas de réchaud, achadas ao acaso, e que em breve me deixarão no escuro. Mas de fato não faço questão dessa luminosidade emprestada que oscila com o vento. Minha alma e meus olhos não se incomodam com a escuridão, com esse breu silencioso que a luz que se foi deixou – simplesmente porque essa luz, de tão intensa, um dia acabou por me cegar.