EU ODEIO BETERRABA
Eu tinha onze anos quando tive apendicite, uma inflamação no apêndice, esse pequeno órgão com o formato parecido com o dedo mindinho, medindo aproximadamente 10 cm e que fica na boca do estomâgo, mas que não serve para nada exceto inflamar e enviar os "sortudos" para a mesa de operação. Se isso ocorrer com você, não se preocupe, o procedimento é simples; se não for realizado numa dessas curvas do Nordeste onde criança doente de qualquer coisa fica aos sapos. Senti a dor do apêndice inflamado na véspera de natal de 1984, no mesmo dia, fui diagnosticado, internado e operado por um cirurgião que parecia a caricatura do Nosferatu e parecia enxergar tanto quanto o Mr Magoo. Minha mãe aterrorizada foi tranquilizada pelo médido que garantiu: " em três dias, o seu menino estará fora do hospital"; fiquei internado três meses. A cirurgia tornou-se um caso de coma, não houve erro médico e sim uma bola de neve de incompetência, onde tudo o que poderia dar errado, caiu em minha cama, desde a cirurgia mal-feita até as infecções hospitalares por estar internado na pediatria com outras tantas crianças com todo tipo de moléstia; mas deixemos o ódio e a compaixão aos meninos que perderam a vida deitados ao meu lado, pois ao vencedor, as siriguelas. Sim, talvez por causa da comida do hospital que não era exatamente uma dieta que salivaria um gato vadio e faminto; tive desejos estranhos e durante todos os meses em que fiquei internado, desejei o gosto da siriguela, a minha fruta predileta, mas que por alguma razão, não podia ser consumida por mim, mesmo estando sob a ameaça da morte que rondava o meu leito de menino ligado a vida por alguma força que ninguém poderia explicar, mas que de complicação e complicação, infecção e infecção, acabou recebendo alta. Porém como nem sempre a vida é justa, ao invés das siriguelas, recebi beterraba.
O motivo pelo qual a minha dieta para os próximos meses foi totalmente baseada em derivados da beterraba não foi planejando pensando nas vitaminas A, C e complexo B que há nela; nem muito menos foi elaborado por essa verdura conter uma grande quantidade de ferro que combateria a minha anemia; a razão pela qual minha mãe começou a me enfiar goela abaixo toda a beterraba que ela encontrava foi porque ela acreditava que eu estava muito pálido e precisava de sangue e toda a sabedoria popular da Paraíba lhe dizia que a beterraba ajudaria o meu corpo a formar glóbulos vermelhos, ou seja, se eu comesse tudo direitinho ficaria vermelho de novo e teria uma recuperação imediata.
No começo, eu não me importava, juro! Embora a beterraba não fosse algo pelo qual eu salivasse; se tinha que comer, eu comia; o problema foi a seqüência em que ela aparecia nos meus pratos. Tudo o que eu comia e bebia tinha beterraba: bolo, pão, arroz, feijão, suco e até no café com leite pela manhã, lá estava ela, aquela raiz vermelha com cara de cebola que ficou muito tempo na praia, olhando-me e sendo praticamente engolida à força. Eu já não agüentava a sua visão, imagine vocês, o cheiro e o sabor. Que me levassem de volta para o hospital, eu não me importava com a injeção ou com o remédio, desde que eu não tivesse que ver novamente um pedaço de beterraba na frente; mas o que pode ser feito quando se tem apenas onze anos e ainda não se tem idade para caçar a sua própria comida?
Fiquei com a beterraba e sobrevivi para contar a estória de um trauma. Sim, jurei que jamais colocaria uma beterraba na boca e assim cresci, evitando sempre que a ocasião pedia, chegar perto dessa verdura.
Não sei se a beterraba conseguiu mesmo me salvar no período pós-operatório, mas sei que meu olfato ficou super alterado e quando o assunto era farejar essa verdura, eu a cheirava de longe e a percebia em seus mil e um formatos. Minha mãe nunca tocou no assunto e jamais me serviu beterraba novamente. Certa vez quase pedi o divórcio por notar que minha esposa tinha colocado alguns pedaços cortados de beterraba camuflados na salada; numa tentativa frustrada que eu superasse o trauma.
A vida seguiu para mim e para ela; a beterraba sabendo que eu não gostava dela e eu fingindo que Deus não a criara.
Esses dias quando meus irmãos e eu nos reunimos para almoçar com a minha mãe no aniversário dela, talvez por acidente ou talvez porque eu estou ficando velho e o meu faro já não vale um vira-lata, notei que ao pegar a salada, um pedaço de beterraba cortada veio escondido embaixo duma rodela de tomate.
Parei o gafo e a faca no ar; o restaurante silenciou; meus irmãos olharam com espanto e a minha mãe ficou com um jeito de quem estava esperando a minha atitude de pânico ou qualquer sentimento de ódio perante a minha pior inimiga. Naquele momento passou pela minha cabeça centenas de cenas, entre elas, as inúmeras vezes em que tinha que comer beterraba depois que deixei o hospital e toda a lembrança da minha angústia e repulsa se fez presente, fazendo girar o meu estômago, mas havia algo errado com o velho Frank, aquele pedaço de beterraba aterrorizada ao invés de me levar ao vômito pareceu-me terrivelmente apetitosa.
Quando coloquei o pedaço de beterraba na boca, todos no restaurante exclamaram: "óoooooo!!!!" Minha mãe bateu palmas, meus irmãos tiraram fotos e eu olhei para a minha irmã emocionada e disse para ela: “consegui superar o trauma!”.
- Estou muito orgulhoso, maninho - disse ela, levantando-se - Vou buscar um pouco mais para você.
Eu a segurei e falei:
- Senta aí. Não abusa, Cris, não abusa!