Em Nova Jerusalém

Em Nova Jerusalém

Quem não tem vintém, dorme nos bancos das praças, mas são bem poucos, porque não se pensa em praças em Nova Jerusalém. Os que são, no entanto, admoestados pelos centuriões, tem sua sorte lançada ao vento e murmuram entre dentes que se tivessem má sorte, teriam então alguma sorte.

Em nova Jerusalém os pedintes dormem ao relento, as mulheres se prostituem por até 10 imaginários (moeda local), o poder plasma-se com a abrangência da eternidade e é mesmo possível se conseguir uma cadeira no senado com 10 mil votos, colhidos nas regiões mais ermas que já se ouviu falar. Dessas regiões nada sabe.

Com a proibição do uso do narguile os soberanos de províncias abastadas ditam aos escribas que a lei é para o bem e todos dela se beneficiam. Desses benefícios nada se sabe. Os escribas apenas repetem o que ouvem, a quem tenha acesso a sua fala enrolada, que mais parece uma algaravia.

As notícias transmitidas em Nova Jerusalém possuem a particularidade de aparentarem as mesmas de décadas e décadas atrás. Os anciões já não protestam, os que protestam logo se calam, os que gostariam de protestar carecem de saúde e cuidados. Quem tem boa memória guarda-a para si ou tenta esquecê-la. De nada lhe vale.

Em Nova Jerusalém não há loucos, pois loucos rasgam dinheiro, e o que se rasga em Nova Jerusalém são valores. Os poetas restantes estão no ostracismo, engolidos pela enxurrada que a tudo apregoa exceto poesia.

Pessoas se queixam em filas quilométricas. Os ladrões, os mercadores e as tropas pretorianas se confundem ao cair da noite. Isso acontece todos os dias e, ao raiar do novo dia, o transeunte confunde as três classes citadas pagando as vezes com a própria vida. O que deveria ser a linha soberana da justiça, em Nova Jerusalém, tramita por vielas, se esgueira em recintos fechados, esmaece com o tilintar de promessas, evanesce com o soar dos decretos e tritura todo e qualquer um que esteja ao alcance da sua indolência.

Disso pouco se fala.

Nova Jerusalém é rica e próspera, embora produza desertos. Desertificou o NE, o CO e está em franca obsessão para desertificar o N. Conseguirá, como o fez com o S e o SE, pois do hábito vem a excelência.

O regime político em Nova Jerusalém funciona de acordo com as camadas da pirâmide: totalitário para os depauperados, ditatorial para os que o examinam, monárquico para os que com ele trabalham, republicano para os que o apóiam e democrático para os forasteiros.

No inverno os coletores de impostos se multiplicam embora isso também aconteça no verão. Duas estações incompatíveis para os legisladores, que surgem na primavera e desaparecem no outono.

Sacerdotes apregoam que o trigo é de todos, e que se o pão está na balança ao invés das mesas a culpa é dos fariseus. Um em cada 5 habitantes está à míngua.

Comercializada eletronicamente, a fé se espalha desde a infância. Acredita-se em tudo, em Nova Jerusalém.

Num dia de calor avistam-se colonos das montanhas da Trácia misturados a hordas vindas da Ásia Menor, juntamente com mercenários disfarçados e jovens da liga dos cismaticos assistindo espetáculos, participando de festas públicas e adorando monumentos, pois todos são bem vindos em Nova Jerusalém.

Apesar da elegância ter sido sublimada pela ostensividade com o galgar dos anos, os remanescentes da antiga cultura guardaram com o brio do heroísmo os pilares de sua educação, e todos os dias às seis da tarde se reúnem em locais secretos para celebrar os ritos, desejosos de que a mesma brisa que um dia contemplou seus ancestrais possa também soprar-lhes as frontes. Para isso cantam, com moderada exaltação, em Ré Maior:

“Vou te contar, meus olhos já não podem ver, coisas que só o coração pode entender...”

Às seis e trinta se recolhem em seus lares, acendem velas e lêem brochuras. O som das corujas difere do rouxinol, que não vem às suas casas lhes evocar velhas lembranças.

Pela manhã, quando saem para o trabalho, se despedem com a apreensão dos que conhecem a fundo o trâmite das probabilidades.

Talvez um dos seus não chegue a tempo para o culto. Talvez nunca mais chegue.

Em Nova Jerusalém, as únicas certezas são o raiar

do dia e o cair da noite.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 07/08/2009
Reeditado em 26/04/2014
Código do texto: T1742128
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