Loucos, lúcidos e pacíficos conviventes

Prólogo:

O anacronismo deste malfadado texto certamente comprometerá sua eficácia. Poderei demonstrar sapiência em algumas linhas. Enganarei alguns poucos com palavras urdidas no acme do gozo de minha momentânea lucidez, mas a loucura da incoerência falará mais alto.

Ficarei muito feliz se houver um lúcido leitor que distorça (essa é minha transparente pretensão), digerindo mal, talvez um pouco mais fortemente, poderá até ter uma percepção grosseira dos meus sentidos dicótomos.

Não me importarei porque o meu lado lúcido possui filtros potentes e é seletivo, já a porção insana do eu irreverente, desprovida de ego, absorverá a sanha e excesso dos irrelevantes inconformados comentaristas pela inocência infantil há muito tempo canonizada.

Não quero que se apiedem dos pobres loucos e lúcidos que convivem harmoniosamente nos seres humanos. Desejo apenas que os compreendam e os aceitem no eterno digladiar do que vocifera uma praga e o que murmura uma prece. Desse modo poderão também se aceitar e serem loucos, lúcidos e pacíficos conviventes iguais a mim.

Eu sou um autodidata, às vezes anarquista, mas o outro eu é um advogado teimoso, disciplinado, recalcitrante na medida em que tenta compreender não apenas a natureza humana, mas, sobretudo a mente de um criminoso contumaz e por isso mesmo incapaz de ser recuperado para voltar ao convívio social.

Em meus cérebros doidos, ambidestros, povoam idéias malucas sobre a possibilidade da coexistência pacífica entre o advogado à moda antiga, exigente, e o autodidata moderno que tenta superar pela indisciplina o parceiro de convívio (o advogado) desde o instante da concepção provavelmente não programada.

Moramos na casa dos sonhos coloridos, mas um dos dois tem pesadelos horrendos durante as noites sem-fim. O outro... Ah! Esse incorrigível sonhador, mormente nas madrugadas frias geme de prazer ao passear pelas trilhas vaginiformes das donzelas e mulheres outras residentes em seu oásis imaginário de prazeres inconfessos.

De vez em quando discordamos e brigamos feio, principalmente quando o assunto é interação social mesclado com sociabilidade confiável necessária.

O autodidata bebe caipirinha com torresmo e farofa confeccionada com farinha brejeira, ouvindo uma música nostálgica (Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Roberto Carlos, Adilson Ramos, Agnaldo Timóteo), em silêncio, remoendo cogitações vivenciadas.

O advogado, pós-graduado em filosofia forense, estala a língua (que sempre desejou ser bifurcada) rósea com seu malte envelhecido por doze longos anos ou degusta um vinho fino ouvindo Richard Wagner.

Ah! Suas diferenças são abissais. Isso é o que os une. Não foi em vão que Mário Quintana disse:

"Por mais raro que seja, ou mais antigo,

só um vinho é deveras excelente:

Aquele que tu bebes, docemente,

com teu mais velho e silencioso amigo."

O poeta das ilusões queria um amigo silente nesses momentos de indefectível sobriedade. No estudioso outro lado sombrio dele havia essa parceria e cumplicidade. Ambos se respeitavam.

Sobre a cachaça o autodidata não era tão seletivo, mas, às vezes, tinha uma crise repentina de altivez e abria uma brecha para beber com o arguto comparsa uma Aguardente de Pêra (com Pêra Dentro) 500 ml. Graduação alcoólica 40% Vol.

Henrique gostava da aguardente importada da França. E o advogado arguto? Do que ele gostava? Ele gostava apenas do puro malte! Não. O velho amigo não comprava, não bebia e tampouco gostava dessa bebida que o seu outro lada chamava de iguaria.

Quando fez doutorado na Sorbonne ele fez um amigo gentil e atencioso que cuidava em lhe mandar, todos os meses, um presente singular. Foi naquele período que ele, o doutor em Ciências Jurídicas e Sociais, se tornou seletivo em demasia.

Em certas ocasiões ele se vestia como um "socialite", mas em outros momentos fazia questão de se vestir como um operário qualquer, mormente quando precisava completar o tanque de combustível do New Civic, Accord Sedã, Cinza Paladium Metálico do ano.

Essa tarefa de abastecer o veículo ele não deixava para o doutor advogado e seu convivente inseparável. Em verdade ele queria mesmo era confundir frentistas e demais clientes do posto de gasolina onde sempre punha o propelente.

Henrique acreditava no refrão: “De todas as dores da Humanidade, possivelmente a mais aflitiva seja a que se constitui na separação dos afetos pelo fenômeno da morte.”. Nessa ocasião é certo que eles (louco e lúcido) não se separariam.

O estouvado anarquista e crédulo sabia viver a vida material. Já o poeta das ilusões teimava em tentar compatibilizar seus desejos com os do seu nada intelectual convivente tentando fazê-lo compreender a necessidade do refino social.

Embora todos saibam que a morte é a etapa final dos que vivem na Terra, não nos preparamos para recebê-la. Eis porque ela sempre nos surpreende, esfacelando-nos o coração em tortura moral.

Para os que acompanham o féretro até o que se denomina a última morada do corpo, o momento deveria ser de sérias reflexões. O que existe afinal, para além do túmulo? Para onde vão as almas dos que se foram abraçados pelo sono da morte? Como diluir a dor da separação?

Que existe vida além desta existência já foi suficientemente comprovado, mas se essa era uma certeza para um dos conviventes era a grande dúvida para o anarquista Henrique.

Ele dizia e perguntava ao seu companheiro de quarto: “quem surgiu primeiro? O ovo ou a galinha? – O doutor advogado cofiava a barba, coçava o saco escrotal discretamente, fazia uma careta arqueando as sobrancelhas grossas e não respondia.

- Viu? Se nós não sabemos responder a essa simples pergunta... pra que estudar tanto? Venha e beba comigo uma boa cachacha e deixe de bancar o sábio! - Dizia o anarquista tentando ser convincente.

Gostamos do mesmo doce, isto é, goiaba, cajú e coco. Amamos a mesma mulher. Temos ideais aos quais lutamos, e sonhos que teimosamente almejamos alcançar. Gostamos de música. De vinho tinto. De beijos na boca e em locais outros mais íntimos. Adoramos abraços apertados.

Eu não gosto de trabalho, mas gosto de enfrentar desafios. Não gosto de cachorros, mas o meu outro lado é um apaixonado por animais e plantas. Gosto de rosas vermelhas, mas o outro eu aprecia cravos e orquídeas brancas.

Adoro sorvetes e chocolates, mas o meu convivente aprecia apenas chocolates e odeia sorvetes! Fazer o quê? Juntos, bebendo uma boêmia a quase zero grau, vimos e ouvimos na TV quando uma atriz global disse: “Eu não tinha, ainda, conhecido o carnaval carioca”.

O meu irascível e amado lado intelectual deu um grito que me fez estremecer o lado obscuro e demasiado bronco. Ele (o advogado) disse apoplético: você ouviu? Viu? Ela disse: “Eu não tinha...” – Ora, o verbo ter jamais poderá ser empregado no sentido de existir (Haver)! Essa mesma atriz poderá querer dizer: "Enquanto tem vida tem esperança". Sabe-se que o correto é: Enquanto há vida, há esperança!

– Tudo bem. Eu ouvi. – Falei de forma tímida, pois ele ficava possesso quando alguém o contrariava e/ou cometia tamanho erro – que mal faz essa construção coloquial se compreendemos o sentido exato no contexto?

É difícil falar sobre felicidade. Porque quando se está feliz, não se quer perder tempo procurando sentido para nada: quer-se aproveitar o máximo.

Felicidade, como estado de espírito, é passageira. Como lembrança é eterna. Sou e estou feliz convivendo com esse meu lado louco e lúcido.

Um é anarquista, não se preocupa e tampouco se importa com absolutamente nada, mas o outro é disciplinado e estudioso e se preocupa com tudo. Convivemos em um só corpo. Temos uma só mente, mas pensamos diferente um do outro porque somos loucos, lúcidos e pacíficos conviventes.