GUERRA SANTA (Uma dose, dois cigarros e um brevê).

Sexta-feira é dia de guerrear em Maceió. Mas é uma guerra santa, sem inimigos ou adversários a serem derrotados. Diz-se assim por não ter hora pra acabar. É só o encontro dos velhos com os novos boêmios lotando os bares, no centro da cidade, em busca da satisfação em beber na companhia dos amigos.

Por incrível que pareça foi em mesas e balcões de bares onde conheci grandes amigos. Meu velho avô já dizia: “Se quer conhecer um homem, beba com ele. Se durante a farra ele exagerar e perder o controle de si, não presta pra amizade nem tão pouco sociedade”.

Nas proximidades da Praça dos Martírios, onde fica o palácio Floriano Peixoto, sede do governo do Estado de Alagoas, existe um desses redutos de sadias batalhas. Caldinho Sertanejo é o nome do estabelecimento. Um lugar simples freqüentado pela mais variada fauna profissional – quase todos homens de bem.

Além da cerveja sempre geladíssima, existe uma grande variedade de cachaças curtidas com frutas. Na quentura da cozinha, Dona Pêu junto com Zefinha pilotam uma Ferrari de seis bocas, último modelo, de onde saem, a todo instante, as porções apetitosas de tripinhas de porco, charque e calabresas fritas. Galinha de capoeira, sarapatel, osso do patinho no feijão, além dos caldinhos de feijão, camarão e dobradinha, completam o cardápio diário deste agradável refúgio.

Desde sua fundação, o proprietário Rogério Maia imprimiu ao lugar um ambiente de ordem e respeito, coisa que se segue até hoje com o atual dono Zé Capela. A clientela, com o passar do tempo, acabou se transformando numa grande família com direito a festa e amigo secreto ao final de cada ano.

Num destes dias de grande movimento passou pela calçada um pastor. Simplesmente cismou com um freguês que estava sentado junto à porta bebendo calmamente sua geladinha. O moço era gente muito boa. Tinha só uma cara feia, mas por conta disto o homem achou de compará-lo ao maior dos pecadores e danou-se a pregar na porta do bar.

Segundo ele, o ambiente estava infestado de demônios, quase todos surdos, pelo tom com que gritava todas aquelas frases tiradas de uma enorme Bíblia que segurava em uma das mãos. Quanto mais berrava mais chamava a atenção das pessoas que passavam pela rua. Ao invés de espantar a clientela o boteco foi se enchendo cada vez mais de gente.

O calor do meio dia estava de matar. O ministro vestido em uma camisa de cor escura e de mangas longas suava sem parar. Depois de uns quinze minutos exposto ao sol e já com a garganta seca, o velho pastor de ovelhas desgarradas, se deu por vencido e foi embora.

A falação dentro do bar voltou ao normal e o assunto do dia virou a pregação do pastor. Alguns queriam jogar a culpa do ocorrido em cima dos pecados dos clientes. Outros diziam que a culpa era do tempero das cozinheiras. Foi até cogitado ser o próprio Zé Capela quem tinha contratado o homem pra aumentar a clientela. A turma toda caía na gargalhada.

A certa altura da tarde entrou no estabelecimento um senhor baixinho de cabelos e cavanhaque brancos. Devia ter perto dos setenta anos. Como todos ali se conheciam logo notamos que o sujeito não era frequantador do local. Ajeitou-se apertadamente no canto do balcão e pediu uma dose de vodka.

Talvez pra chamar a atenção o cidadão começou a puxar conversa com um, contar uma piada pra outro e foi rapidamente mostrando seu jeito canastrão. Não podia ver um grupinho conversando num canto que se metia logo no meio e sem mais nem menos contava uma de suas aventuras. Estava se sentindo a última rapadura da feira de Caruaru.

Levou bem meia hora pra tomar a dose. Quando deu o último gole olhou para um freguês que bebia sozinho sua cachacinha e fumava tranquilamente num canto do balcão. Foi até ele e viu que guardava um maço de cigarros no bolso da camisa.

- Jogue isto fora meu amigo esta porcaria vai acabar lhe matando, disse o velhote metendo a mão no bolso do homem.

Tirou os dois cigarros que havia dentro, amassou-os e jogou no chão. O moço ficou perplexo pra não dizer puto. Já estava bebendo fiado por falta de dinheiro e o infeliz do velho acabara de destruir seus últimos cigarros.

Nem sei se o rapaz entendia de aviação. Só sei que em menos de dois segundos ensinou o ancião a voar. Com um soco no meio do queixo, o danado saiu em voo solo e foi aterrissar dois metros depois em cima de uma mesa. Nunca vi ninguém tirar um brevê tão ligeiro.

A turma acudiu logo. Colocaram o idoso em pé e olharam pra ver se estava ferido com gravidade. Constatado que não, deram-lhe água com açúcar até ele parar de tremer. Ali mesmo foi criado o TJE, Tribunal de Justiça Etílica. O caso foi imediatamente apreciado e julgado pela corte dos clientes mais antigos.

O coitado do ancião foi considerado culpado e ficou determinado que nunca mais ele mexeria nos cigarros dos outros, já que era um ex-fumante cabuloso. Enquanto isto, o agressor recebeu apenas uma advertência. Ficou proibido de colocar em prática seus conhecimentos aéreos, recém descobertos, com alunos maiores de sessenta e cinco nos.

Sem polícia e sem malícia o caso foi encerrado, os dois fizeram as pazes e o ambiente voltou ao normal. Pra comemorar as novas amizades o velhote quis pagar uma rodada de cerveja para os presentes. Quando abriram as primeiras garrafas eis que apareceu na porta do bar o incansável pastor. De roupa trocada e com o fôlego renovado ele começou a ladainha dele tudo outra vez.

Eita guerra santa!

Herivaldo Ataíde
Enviado por Herivaldo Ataíde em 06/08/2009
Reeditado em 08/08/2009
Código do texto: T1740720
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