Às vezes

Uma vez, fui aquele que se entregou de corpo, alma, sangue e mente a uma mulher. Fui tudo o que ela quis, e ela pôde, com toda a força do verbo, fazer de mim o que à sua cabeça ocorresse. Cheguei a elevá-la ao posto de santa, onde eu, mero devoto, subjetivei e abdiquei a minhas trivialidades em função de sua satisfação total. Quando no fim, como em muitos outros fins, a dita cuja não merecia. Uma vez.

Duas vezes cri que eu não serviria ao Exército. Meu pai me garantiu, em duas ocasiões distintas, que um capitão amigo dele faria com que meu cabelo "black power" se mantivesse intacto após as três apresentações em Triagem. Dito e nada feito. Uma semana depois, já marchava com desenvoltura, e acordar às 4h30min já não era mais problema. Literalmente, "ah, meu pai..." nessas duas vezes.

Três vezes minha mãe foi chamada à minha religiosa escola, Santa Rosa de Lima, durante minha 6ª série. Realmente, eu era a personificação do caos. Minha professora de Matemática à época, a irreverente Lêda, me levou à capela do colégio algumas vezes com o intuito de exorcisar-me. Aqui, não minto: frustrada, trocou-me de classe. Lembro bem da expressão facial de minha mãe quando, na derradeira visita à sala da diretora, ouviu: "Carla, querida, não sei bem como dizer, mas esse menino é o Anticristo". Tadinha de mamãe. A constrangi nas três vezes.

Quatro vezes dezessete, conta a Álgebra, dá sessenta e oito. Mas minha avó, ao partir, deixou à Terra o que nem esse número em anos é capaz de tremular. Beirando a idade da multiplicação inicial, Elizabeth partiu. Nem sessenta e oito anos de vida, vinte ao meu lado, à época, são capazes de suprir dois anos de imenso vazio. Daí, concluo que Matemática -- desculpe-me, cara Lêda -- não é uma ciência exata. Pra mim, quatro vezes dezessete é dois, porque não quero ter de esperar sessenta e seis anos para sofrer mais do que já sofri nesse biênio. Esta semana corre à data de dois anos após a morte de minha avó. E já estremeci mais de quatro vezes.

Cinco vezes. Ah! "Eu sou Flamengo de coração! Eu sou do time que é pentacampeão!". Não há glória maior na minha vida do que fazer parte da Nação. Mengão, meu parceiro. Sempre que me flagro triste, recorro a ele -- seus vídeos, fotos, tributos e façanhas sempre me alegram em tempos revoltos. E nada precisa fazer, nem vencer é necessário. Minh'alma para sempre efervescerá ao timbre da odisséia rubro-negra, ganhando ou perdendo. Te amo, meu Flamengo! Te amo! Te amo! Te amo e te amo! Cinco vezes!

Recordar é, sim, viver. Mas o inverso não se faz verdade. E nenhuma, nenhuma vez mesmo, fui tão sincero ao proferir os seguintes dizeres: dá gosto ver a vida só às vezes!

Preto
Enviado por Preto em 06/08/2009
Reeditado em 01/12/2011
Código do texto: T1740308
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