"SAGENTO REPONSAVI"
Hoje as crianças se vestem como mocinhas e seus pais gastam uma boa grana para satisfazê-las em seus desejos de consumir marcas como Lilica Ripilica e similares.
Houve uma época, porém, em que nossos modelitos eram feitos por costureiras e indubitavelmente eram vestidos cinturados, rodados, franzidos ou pregueados, e armados por muitas anáguas engomadas. Comprimento? Nada de pedacinhos de coxas de fora, a altura perfeita era acima do joelho. Calcinhas? Eram de panos franzidas por elásticos ou presas por botões. Completando a indumentária, um par de meias cano curto ou longo, adornadas por rendinhas, e um meigo sapatinho, normalmente branco ou preto, de salto baixo.
Era assim que me vestiam no início da década de 60 e confesso que eu me sentia linda, quando eu e meu pai íamos às matineés ou soireés (sessões da manhã ou da tarde) para assistir a algum filme, normalmente de cunho religioso como “O Manto Sagrado”, épico como “Maciste””, de guerra ou de faroeste.
Tenho a sensação de que eu não entendia bulhufas das películas, mas eu adorava meu pai, dele eu era o xodó e, além disso, era bastante incentivada por minha mãe. Apenas muito depois eu fui entender por que ela insistia tanto para que eu o acompanhasse: ele era bonitão, corpo atlético (era militar) e um exacerbado galanteador.
Certa tarde, minha genitora arrumou-me com umas dez anáguas engomadas e um lindo vestido rosa bebê, com ramos e flores bordados no peito e na cintura. Lembro-me da mão de meu pai segurando a minha, enquanto descíamos a rua principal de Miracema, minha terra natal, rumo ao cinema. Lembro-me, também, do sorriso estampado em seu rosto, a partir de um ângulo de baixo para cima: eu devia ter menos de um metro de altura e ele um metro e setenta e cinco centímetros.
Uma hora após o filme (acho que era de guerra) ter começado, eu senti desejo de urinar e comecei a perguntar: “Pai, falta muito para acabar?”. Gentilmente ele me respondeu: “Uma meia hora, filha.” O que é meia hora para uma criança? O que é meia hora quando se quer fazer xixi? Repeti minha pergunta umas três vezes e nunca entendi porque eu não pedi para ir ao sanitário. Acho que eu não sabia que naquele recinto havia um lugar apropriado para as pessoas urinarem.
Premida pela necessidade fisiológica, eu me lembro da urina morna saindo de mim, inundando minhas coxinhas e também as dez anáguas que armavam meu vestido. No “lusco-fusco” do cinema eu vi um rastro de xixi descer assoalho abaixo e senti muita vergonha.
Não sei precisar quanto tempo depois a sessão acabou, mas nada mais estava morno, tudo estava frio por baixo daquele monte de pano molhado. Saí do cinema sem mais segurar a mão do meu pai, caminhei (quase corri) em sua frente até chegarmos a nossa casa.
Uma vez ali, fui ao banheiro, retirei a montoeira de roupa mijada, botei uma camisolinha fuleira e fui me deitar. Certamente minha mãe já descobrira a razão de eu estar assim, mas jocosamente me perguntou: “Filha, cadê seu vestido lindo?” Eu emburradinha lhe respondi: “Só conto pro meu pai”. Ela retrucou: “Ah, é assim? Mamãe compra roupa bonita, arruma a filhinha e depois ela só quer conversar com o pai?” Ao que eu respondi: “Eu só conto pro papai, porque ele é um “sagento reponsavi!”
Durante muitos anos, toda a minha família me gozou e juntos rimos com essa história, que, no fundo e no raso, expressa o nível de amizade e confiança que existia entre mim e meu maior amigo.
Neste domingo, Dia dos Pais, quando há quinze anos eu não posso mais abraçá-lo, com lágrimas saudosas que me escorrem pelo rosto, dedico esta crônica ao meu eterno “sagento reponsavi”.