Um pobre rapaz nu

Rio de Janeiro, 4 de agosto de 2009

Um rapazinho moreno com feições finas, rosto manchado pelo grude da sujeira das ruas do Rio, corpo malhado com algumas manchas de sujeira e o tronco escondido por baixo de um trapo também sujo. Cabelos lisos tipo índio, desalinhados e emplastados. Olhar sem miragem. 

Eu andava apressado pela Av. Rio Branco na altura do número 100 em frente ao Mc Donald. Pensava como controlaria o meu mau humor ao entrar no Itaú, logo à frente, para conhecer a proposta de negociação que pedira dias antes. Queria obtê-la impressa e levá-la ao Tribunal Especial Cível, antigo Tribunal de Pequenas Causas. Seguia perdido em meus pensamentos atribulados - não queria repetir o mau humor que experimentava todas as vezes que fazia algo deste tipo. Por conta da pressa e aprofundado nestes pensamentos ia atropelando algumas pessoas, desviando de outras e esbarrando meus braços pendulares em outros braços desconhecidos. No horário do almoço a Rio Branco fica entulhada de gente que sai para almoçar e aproveitar o tempinho para resolver algum problema. 

Uma gritaria despertou-me dos pensamentos embaralhados. Observei alguns ambulantes rindo muito e apontando para o meio da avenida. Olhei, lá estava o rapazinho. Atravessava lentamente a Av. Rio Branco. Pelado, com a parte de baixo completamente nua. Demorei achá-lo no meio da multidão, que também atravessava a movimentada rua. A maioria das pessoas não reparava no coitado. Apressadas como eu, as pessoas estavam absortas em seus compromissos e cuidando para atravessarem a rua no tempo espremido do semáforo reservado para elas.

Quando percebi o ocorrido olhei para o rosto triste e indiferente do coitado. Veio-me subitamente à lembrança um tipo de sonho recorrente que tenho. Nestes sonhos estou sempre pelado no meio da multidão tentando esconder-me, mas sem conseguir fazê-lo. Tenho este tipo de sonho geralmente quando estou em alguma situação difícil. Ao acordar respiro aliviado por constatar que tudo não passara de um sonho. Tenho também outros sonhos significativos, mas que aqui não caberia relatá-los, contudo o farei em outra ocasião.
 

O rapaz, a esta altura, já atravessava rapidamente a avenida acuado que estava pela gritaria cruel dos ambulantes e dos olhares da maioria das pessoas, inclusive o meu. Meu coração encheu-se de indignação pela crueldade humana exercida pelos ambulantes que torturavam o pobre rapaz com as suas zombarias. Diminui um pouco a velocidade, mas não tive coragem de ficar olhando a cena. Tocou-me profundamente o triste quadro. Continuei o meu trajeto consternado pelo rapaz. Um jovem, bonito, ainda com resquício de saúde, o que significava que talvez fosse um recém mendigo. Certamente estava passando por algum momento muito triste e difícil em sua vida, concluí. É raro ver pessoas nuas no centro das grandes cidades. 

Saí do banco Itaú com o objetivo alcançado, pois conseguira controlar o meu mau humor diante da proposta indecorosa de negociação feita pelo banco. Aliás, nos termos em que eu já esperava. Atravessei a Av. Rio Branco e entrei na Rua do Ouvidor em direção ao Tribunal Especial Cível para tentar impetrar um processo contra o banco. Ao chegar na Av. Primeiro de Março resolvi primeiro passar no Centro Cultural Banco do Brasil, para retirar o excelente guia Viva Música, que é editado mensalmente e contém toda a programação musical da cidade. 

Surpreendentemente, ao sair o CCBB deparei-me novamente com o pobre rapaz na porta do banco. Agora ele estava vestido com uma sunga azul, provavelmente alguma alma caridosa o havia socorrido. Ele estava conversando calmamente e em um tom educado com os seguranças do banco pedindo para ir ao banheiro. Os seguranças, também educadamente respondiam que não seria possível atendê-lo por ele não estar trajado adequadamente para o ambiente. Percebi claramente que aquele rapaz não era um mendigo habitual. Certamente estava passando por um momento muito difícil em sua vida, até por estar tentando entrar no CCBB para banhar-se. Um mendigo habitual jamais faria isso por saber que não conseguiria. 

Nestes momentos é que penso, por que o poder público, no caso o municipal, não disponibiliza imóveis com infraestrutura básica para abrigar essas pessoas. Existem diversos imóveis públicos desocupados no Centro da Cidade que poderiam certamente ser reformados e mobiliados com camas, tipo aquelas dos alojamentos militares, com roupa de cama, banheiro, cozinha, espelho e alguns guardas municipais na vigilância disso tudo. Essas pessoas teriam mais dignidade.

Poderia haver um intercâmbio com as igrejas e associações para disponibilizarem enfermeiros, psicólogos, médicos, professores, padres, pastores etc. Enfim, a secretaria de ação social do município poderia, de fato, prestar este socorro a esta gente desafortunada. Essa idéia pode parecer ingênua em princípio, e logo alguns pessimistas poderiam questionar se de uma hora para outra não haveria uma multidão de pessoas nas ruas só para serem atendidas por este serviço. Claro que se isto fosse bem organizado e planejado eisto não ocorreria. Além do mais, sabe-se que a quantidade de pessoas que perambulam pelas cidades não é tão grande assim.
 

Bem, ainda observando o diálogo do pobre rapaz com os seguranças, revi em meus pensamentos tudo isto que escrevi acima. Depois continuei o meu rumo pois já estava atrasado e ainda iria ao tal Tribunal Especial Cívil para tentar resolver o meu problema. 

Fui pensando no pobre rapaz. Subitamente ocorreu-me se eu não estava submergido em um daqueles sonhos que relatei acima, pois uma das características dos meus sonhos é parecer que conquistei algum tipo de amadurecimento ao ponto de me permitir, ainda durante ele, concluir que não estou sonhando! Claro, isso se desfaz logo que eu desperto e constato que, de fato, eu estivera sonhando.

Bem, infelizmente este caso era realidade. Confirmei isto com um doloroso auto beliscão no braço esquerdo.
 

Sabedor de que a gente esquece dos sonhos rapidamente, e ainda na dúvida se o beliscão também não fizera parte deste tal amadurecimento onírico, tratei logo de registrar o fato neste texto que acabas de ler.