Um vendedor de canetas II

Exultei-me com aquele senhor. Hirto – em sentido conotativo – segui por minha viagem. Como o desconsolo atroz do destino, entra-me no ônibus uma senhora. Auscultei-a demoradamente. Sentou-se ao meu lado, e quieta ficou. Trazia trajes, como o meu nobre amigo vendedor de canetas, pobres. As cãs estavam-lhe amarradas, presas por uma presilha. Em sua mão, era notável a presença de um livro: A Bíblia Sagrada. Como que sem aprumo, levantou-se a senhora, e pôs-se a cantar. Seu estridor era medonho. Cantava, ela, músicas de “Deus”. As pessoas começaram a ficar nervosas. Não enxergaria, ela, que aquilo era, acima de tudo, uma afronta à liberdade individual, conquistada tão suadamente pela humanidade? Não parecia ver. O fanatismo tomava-lhe o corpo inteiro – e não só a voz. Ela levantou; pôs-se de um lado a outro. Continuava a cantar. Meditei alguns instantes: quem mais se encontrava espiritualizado, a mulher de agora, ou o senhor tão educado de ontem? Costuma-se confundir o seguir das palavras com o entendimento das palavras. Aquele senhor que, possivelmente, nunca teve acesso a um livro sequer, era maior entendedor da bondade do que aquela senhora, suposta conhecedora dos ensinamentos sagrados. Não faço aqui apologia a nada. Sou apenas um ser observador, que não perde os detalhes do transcorrer da vida. Isso me aconteceu, como a muitos; a diferença é que registro. Registro para que outros, interessados como eu, possam auferir do que passou uma áspera ponta de verdade (que é o mero olhar que se dá a tudo). Desço do ônibus.