Um vendedor de canetas
É com estrado na vivência que irei, agora, representar uma peça real; um soluço dos sentimentos. Deslocava-me em direção à Lapa. Em caminho – dentro do ônibus – ia distraído, distante, com a visão presa ao mar, e com o mar solto em minha cabeça. Era tarde, ao que me resta à memória. Entrou-me um senhor pela porta da frente. A princípio, não me comoveu em nada. Direcionei-me, então, ao seu imo, como o jogador que não vê apenas pela face; mas por dentro. Seu bordão era deveras simples; suas vestes, também. Usava uma camisa laranja, cheia de marcas de produtos; um short preto, bastante sujo; nos pés, usava uma sandália azul, com traços brancos. Não que esses detalhes mudem as circunstâncias, mas mostram a total discrepância entre a união das cores, o que perfaz a simplicidade com a qual o nobre homem se vestia. Era ele um vendedor. Trazia, em suas mãos, canetas. Não era isso que impressionava. Seu olhar era, pois, dardejante. E digo mais: ele era cego. Cego dos olhos sim, todavia profundamente conhecedor da alma humana. Onde seus antepassados sofreram fortemente a dor do látego absurdo, sua vivência não era demasiado diferente; havia, em todo seu corpo, a expressão do sofrimento. Ainda assim, nosso homem era altivo, forte, viril. Ao passar por mim, ofereceu-me canetas. Eu, que lhas necessitava, resolvi comprar-lhe três. Tirei três reais do bolso e dei-lhos, enquanto disse: É uma nota de dois e uma moeda de um real (fiz isso pois, como se sabe, ele não enxergava). Um súbito silêncio se deu em segundos. Depois, ele manifestou-se: está errado. Como assim errado, disse-lhe. Num ricto, ele me falou: cada caneta custa cinqüenta centavos, e não um real, senhor. Como poderia eu vender-lhe a esse preço, se Deus me castigaria? E, nesse instante, devolveu-me os meus um e cinqüenta. Poderia o senhor, com facilidade, ser um verdugo; poderia, ele, roubar-me o dinheiro e sair, talvez até com a consciência limpa; e assim não o fez. Deus o castigar? Duvido deveras que Deus castigue ou julgue alguém. Entretanto, a compreensão dele não se limitava a isso. O que o limitava, em verdade, era a sua linguagem. Mas ele foi além: saiu da miséria estúpida da intelectualidade para atravessar um universo indescritível. Mostrou-me, tácito, como era grande o traço de sua alma. Levou não somente minha admiração, mas a consciência de que seres como aqueles são eternos, ainda que miúdos diante o dinamismo do mundo.