À SOMBRA DA VIDA

Em um dia qualquer do pós-guerra ele nasceu, e no seu choro um triste lamento, pois acabava de ver um mundo conturbado onde o cheiro da morte e o som da babárie atravessavam o mar e permaneciam estarrecendo um planeta silenciado frente o terror.

Ele cresceu esperançoso de uma vida feliz, mas no seu caminho muitas pedras o esbarravam. Sem escola, sem amparo e sem rumo, ele foi obrigado a sobreviver da miséria de um trabalho subumano: trocando sua penosa mão-de-obra por um punhado de qualquer coisa. A enxada e a foice eram o tudo de si, e nada mais. Seus sonhos de menino logo se desfizeram na carência e na poeira da miséria e sua vida de sofrimento transcorreu-se por longos anos. Nada de bom lhe acontecia. Seus oito filhos logo surgiram para imitá-lo e fazerem crescer uma família muito mais sofrida e apiedada. Esta é uma minúscula biografia do brasileiro Sindoval. Apenas, Sindoval: um distinto e probo sertanejo a quem tive a penúria de vê-lo sentado no cabo de sua enxada sob a copa de um cajueiro; comendo farinha de mandioca, pimenta malagueta e água: únicos ingredientes de sua “farta” refeição do meio-dia, a qual agradeceu a Deus com uma fervorosa benzedura.

Mesmo assim Sindoval pilheriava de si próprio dizendo-se contente com a vida que Deus lhe dera – confidenciou-me após aquele desjejum –, e julgava-se feliz. Era ele o símbolo animado do consolo, do autoflagelo e da desesperança. Nada ele conhecia além do horizonte de seus restritos limites e sua sabedoria estava estagnada na busca ansiosa da sobrevivência: era viver ou morrer. O cabo da enxada era a caneta com a qual rabiscava o chão alheio do nascer ao pôr do Sol e do qual resgatava o seu insignificante sustento. E se achava feliz.

Saudei-o, dizendo:

- Bom dia.

Deu-me um sorriso acanhado e me confirmou:

- Bom dia, doutor.

Analisei o contexto e achei sarcasmo na minha saudação ao desejá-lo bom dia. Qual seria o seu dia bom frente àquela vida ruim?

O seu chapéu de palha cobria um rosto enrugado pelo tempo e pelo sofrimento mas, nos seus olhos, um brilho inesquecível. Eles fitaram-me iluminados, e eu também sorri.

Sindoval parecia uma criança desdentada, rindo do nada.

Disse-me acreditar em Deus, e que “um dia tudo vai melhorar”,

Pensei... será?

Passou-se um bom tempo e alguém me falou:

- Voce sabe quem morreu?

- Quem? Quem? - perguntei insistente.

- Sindoval! Morreu de fraqueza. Coitado!

Já entristecido pela sofrida lembrança respondi:

- Acho que ele nem viveu. Era um morto andante, um homem que acolheu as desesperanças. Onde quer que estja, que Deus o tenha - conclui.

Confirmaram-me que uma rede de pano serviu-lhe de ataúde.

Deixou como herança oito filhos e quatro netos a serem usados na mão de obra descapitalizada.

José Pedreira da Cruz
Enviado por José Pedreira da Cruz em 11/06/2006
Reeditado em 22/06/2021
Código do texto: T173566
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