Tempos Embaralhados
Tempos Embaralhados
Nesse tempo, 2009, a lua estará cheia no dia 5 de agosto e eu ouvirei no rádio uma canção cujo nome sempre esqueço. Isso já aconteceu tantas vezes que não terá a menor importância.
Naquele tempo, 1907, ela nasceu num sobrado austero no centro de Campinas. Quando menina, gostava de andar de charrete. Quando moça se mudou para São Paulo, e se divertia fazendo longos passeios de bonde, indo da avenida Angélica ao Parque da Cantareira.
Em outro tempo, 1958, eles moravam próximos a rua da Consolação. Teriam um filho dentro em breve. Antes, porém, enquanto ela suspirava pelo enxoval, ele escangalhava um Chevrolet novo em folha na esquina da Haddock Lobo. Em tom jocoso, ele contaria essa história muitas vezes. Hoje ele está num quarto de hotel com alternadas clarezas das próprias reminiscências. Seu filho também bateria o carro, em frente ao hospital Santa Paula, em 1995.
De uma forma menos ortodoxa, o poeta Melo de Moraes Filho compõe “Gosto de ti”, em 1882.
No tempo de depois em relação a alguma coisa, e anterior em relação a outra, aquela mulher nascida em Santos amou muito seu marido. Criou para ele um apelido carinhoso. Ele era toda a sua vida. Quando ele partiu, ela se viu sozinha com os três filhos.
Naquele tempo, 2004, aquele pai está com os filhos ainda crianças, numa praça em construção, domingo, 10 horas da manhã. O sino de uma igreja próxima ecoa junto com o vento frio de julho. Ele sabe que, por toda a sua vida, jamais esquecerá esse momento.
Se tudo não corresse bem com o poeta Melo de Moraes Filho, ele não publicaria “Artistas do meu tempo”, em 1904. Também não teria descendentes. No entanto, tudo corre a contento e um de seus netos, de nome Vinicius, trabalharia no Itamaraty.
O homem que bateu o Chevrolet separou-se da mulher em 1962. Cinco anos antes ela entraria no Jóquei Clube de São Paulo, na véspera de ano novo, e teria uma discussão acalorada com o maitre. Ela era filha de um proeminente banqueiro. A discussão chegou a tal ponto, que eles foram para casa sem celebrar a passagem do ano. Hoje ela mora num asilo e tem fraca memória para a imensidão das águas que já passaram.
Naquele tempo, há dez anos atrás, aquele casal se conheceu numa lanchonete no bairro do Itaim. Jamais se casariam, e trocariam todas as oportunidades possíveis de intimidade por uma guerra de poder popularmente conhecida como sexo.
Ao raiar de uma manhã qualquer, num tempo diferente, 1954, o neto do poeta Melo de Moraes Filho, chamado Vinicius, chega na residência do amigo Sergio Buarque de Holanda, em Roma. Sergio, por sua vez, tem um filho chamado Francisco. Naquele instante, o menino queria a todo custo ver de perto o diplomata denominado Vinicius, porque talvez pudesse nunca mais vê-lo, ou porque, inconscientemente, aquele encontro teria algum significado
em sua vida.
O homem que bateu o carro em frente ao hospital Santa Paula, em 1995, juraria o tempo todo, para a esposa, nunca mais tomar uma gota de álcool. Na linha do tempo, ele bateria o carro novamente em 1996, 1997 e 2004. Nesta última, um domingo friorento, ele sairia do posto de gasolina a 40 km/hora e bateria num poste. O corpo foi levado sem vida para o hospital Santa Paula. O barulho da sirene da ambulância quase se mistura ao badalar dos sinos da igreja próxima a determinada praça, onde um pai caminha feliz com os filhos e pensa que aquele momento jamais sairá de sua memória.
A mulher que amou muito o seu marido tinha onze anos de idade quando assistiu o filme norte-americano “Love story”. No natal seguinte ela ganharia um disco com a trilha sonora do filme. No mesmo dia em que ela ganha o disco chega em Paris um telegrama, oriundo do Rio de Janeiro, para o compositor da trilha, Francis Lai. Esse telegrama dará inicio a um escândalo público, pois fica evidente a absoluta coincidência musical do filme e da composição poética do flautista Pedro de Alcântara, intitulada “Dores do coração”, de 1907.
Em 1971, o homem que bateu o Chevrolet tinha 35 anos. Ele estava com seu filho na estrada que liga São Paulo a São Sebastião às 13 horas de um sábado ensolarado. Param num posto de gasolina e dez minutos depois passa por eles uma perua Variant azul, tendo no banco de trás um casal de filhos. Às 16 horas os carros estão emparelhados na fila da balsa de São Sebastião. Todos os ocupantes estão inconscientes de que, 30 anos mais tarde, irão se encontrar. Nos aparelhos dos rádios de ambos os carros sai uma composição de Francisco Buarque de Holanda e Vinicius de Morais, levando-os a cantarem juntos, os adultos com mais propriedade e conhecimento da letra, as crianças com maior ímpeto.