Abrir a felicidade?
A vida de um homem comum
e a nova campanha do refrigerante preto
Estou aqui. E estar aqui é doce e amargo. Pronto. Lá vem um desses cronistas depressivos pra baixar ainda mais o astral nesse invernozinho gripado e pouco contente do Rio de Janeiro, pensarão. Realmente, o que estou matutando pras próximas linhas tem contra-indicações, e é mais dor que sorriso. Se “a juventude é uma banda numa propaganda de refrigerantes”, como cantou de forma provocante Humberto Gessinger, eu não sei. Assim como não sei de muita coisa. Só sei que estou mergulhado numa das minhas confusões de existir. Amargo, tentando não perder o que me resta de doçura.Tenho, no decorrer da minha vida, aprendido a apreciar o amargo e também a me enjoar fácil do que é doce. Estou aqui nesta vida e neste mundo, e minha cabeça não mais vive tanto em outros mundos. O meu “algo além” não ultrapassa mais a estratosfera. Hoje pouco penso em astronomia, na organização dos astros – não que isso não mais me importe em definitivo. Os meus predadores, eles fazem-me ficar mais pra caverna do que pra céu. Quem são os meus predadores? São aqueles mesmos que me deram a vida e me ensinaram sobre a vida: os atores sociais. A sociedade é o deus dos deuses. Ela é quem nos faz ser e deixar de ser. Ela é quem nos ensina tudo o que sabemos e nos faz desaprender o essencial. Ela é quem nos torna confortáveis, “sociáveis”, e, ao mesmo tempo, nos deixa sem jeito, sem graça, com mal estar de ser. Ela e seus dogmas morais impossíveis de serem cumpridos com gosto. Ser imoral é estar vivo. E ser vivo é sofrer sanções de variada sorte.
Eu nunca tive paraíso, nem hipotético. Eu nunca acreditei em céu. E também nunca cri em inferno. E também nunca cri em formas absolutas de bem viver. Me fizeram pensar que eu pudesse acreditar nessas coisas. Creio que, na verdade, nunca acreditei em nada. Acho que eu fingi durante muito tempo – pra mim mesmo – acreditar. Mas isso já faz alguns anos.
Resta-me então agora olhar para o micro. A vida pequena e funcional. A cozinha, a sala, a cria, a companheira, os amigos, o umbigo: estas são as coisas às quais devo me ater. Verdade absoluta? Deus? Satanás? Espíritos? Big Bang? Galáxias? Creio que já gastei tempo demais com isso tudo. E, no entanto agora, o que entra no lugar de Deus e das Galáxias? O dinheiro? Não. Deus saiu e o dinheiro não entrou. Isso me deixou vazio de tudo, cheio de questões e formulações incompletas, que são como vapor de éter. Não guardo comigo as coisas que mais protegem um homem, são estas dinheiro e Deus. Sinto-me então às vezes como um pequeno homem solitário num pequeno barco, num grande mar, à mercê do tempo. Meus braços até têm alguma força para remar, mas a terra firme está longe demais. Minha vida é incontinência. Cansaço em descansos compulsórios.
Estou aqui. Tentando me distrair com arte e afins. Tentando extrair um mínimo de satisfação da arte. Música e artes visuais. São elas, as artes pop, a minha religião, onde me refugio tentando satisfazer meu não-sei-o-que. Satisfação. Alguém, em algum dia, provavelmente uma bactéria, inventou que satisfação é o que de fato importa na vida. A luta por satisfação pode ser vista no comportamento de qualquer inseto, planta ou micróbio. E de lá pra cá – desde as bactérias primordiais – isso é tudo o que buscamos. Satisfação pode ter como sinônimo a palavra felicidade. Antigamente, que eu me lembre, o slogan da Coca-cola era um simples “Coca-cola é isso aí”. Como é que alguém conseguia vender um produto dizendo sobre ele apenas “... é isso aí”? “É isso aí” pode ser, na verdade, a expressão máxima irredutível da afirmação do ser. Era eu um menino, e no dia em que eu ganhei uma camisa da Coca-cola, numa tampinha premiada, pensei, sem ter feito a formulação em si, mas pensei: “eu sou”. Nada mal o trabalho daqueles marqueteiros. Depois vieram outras frases ainda bem interessantes como a recente “Viva o lado Coca-cola da vida”. Mas nada supera e consegue ser mais pesado e contundente que o novo slogan. E eles pegaram bem pesado desta vez: “Abra a felicidade”. “Abra a felicidade”, este é o novo slogan da multinacional. Num mundo que busca a felicidade como algo a ser conquistado imediatamente – uma felicidade fast food – nada poderia ser mais oportuno que essa nova campanha. A felicidade nunca esteve tão barata: o preço de uma Coca-cola. São os truques, os mecanismos do capitalismo para multiplicar seus ganhos e manter o povo anestesiado. É um grande barato. Há muitas coisas baratas. Somos idiotas felizes com uma bebida barata, e todos os tipos de felicidade forjada e barata, como um crediário a perder de vista para comprar uma nova TV, e assim poder ver nela, em bom vermelho, o rótulo do refrigerante. A felicidade que vem da TV às vezes é mesmo muito barata, como esta coisa, essa possibilidade de extraí-la de dentro de uma garrafa como se uma lâmpada maravilhosa fosse. Porém o eterno e aparentemente imortal americam way of life trazido pela televisão não é tão barato assim. Há um vasto repertório de sonhos pré-fabricados que não saem nada barato para os pobres do mundo. Há muitos sonhos caríssimos. Sonhos impossíveis. Sonhos que eram inconcebíveis antes do advento da comunicação de massa. Sonhos que eram insonháveis e que agora habitam nossas almas. Burguesia e plebe sonham juntos os mesmos sonhos, porém só a primeira tem poder para realizá-los a contento, transformando-os em, mais do que sonhos, projetos de vida.
Confesso que fico feliz quando abro uma Coca-cola com garrafa de vidro. Há estudos sobre a influência das marcas no mundo contemporâneo e seu papel na felicidade das pessoas que confirmam o que eu estou falando, o que não faz de mim um louco varrido por me contentar com uma coisa tão pequena como abrir uma Coca-cola. Sou apenas mais uma vítima do mercado mundial. Há muitas coisas bem baratas que me trazem contentamento psicológico – que é o único contentamento que existe –, como abrir uma Coca-cola, alugar um filme na locadora, comprar um CD e ouvir as músicas que estão nele, comprar um livro e ler o que nele está escrito, sabendo inconscientemente de antemão o conteúdo, pois muito do que se lê nos livros já se sabe. Quase sempre assim: comprar, comprar, comprar. Mas como eu faço para comprar as felicidades mais caras – aquelas que só as pessoas da parte de cima da pirâmide social podem comprar... O sol nasce para todos? Tá legal. Alguém hoje em sã consciência realmente se satisfaz com essa informação, de que o sol nasce para todos? Entramos então naquelas velhas novas anedotas: “O que você prefere? Aproveitar esse sol que nasce pra todos, de pés descalços com uma enxada nas mãos, longe da sombra num sertão sem nuvens, ou ainda na sombra quente e insalubre de uma fábrica, fazendo hora extra, ou preferiria olhar para esse sol com óculos escuros de dentro de uma Mercedes Benz conversível, com uma bela e despreocupada mulher ao seu lado numa estrada paradisíaca?”.
Seria a Coca-cola um deus? Sei lá. De qualquer forma, Deus abençoe a Coca-cola! A felicidade vinda desta bela garrafa com seu belo rótulo vermelho, me custa apenas duas moedas. Quanto ao feio líquido negro que vem dela, que mais lembra suco de petróleo ou de cocô? Ah, isso é o que menos importa. E quando Ele, Deus, puder dar uma olhadinha nos trabalhadores rurais, operários e todos os pobres compradores de aparelhos de TV e de garrafas de Coca-cola... Que não falte comida barata, diversão barata e arte barata aos pobres do mundo.
Tudo o que eu escrevi nos parágrafos anteriores está impregnado de ironia e tristeza, isso parece claro. Houve, porém, um intervalo entre o tempo em que eu os escrevia e o instante imediatamente atual, este aqui. Não fui assistir TV. Mas fui tomar um banho em chuveiro quente – uma dessas maravilhosas invenções que só puderam ser disponibilizadas a todos, graças ao nascimento e desenvolvimento da burguesia capitalista industrial. Botei uma confortável blusa de lã, meu jeans, meus velhos tênis adidas, e fui até o meu quintal, de onde vislumbrei as discretas montanhas do meu bairro com suas casas, do outro lado da ferrovia. Olhei pra minha garagem, pro meu carrinho velho e tosco, mas, no fundo, simpático e funcional, e pensei se eu precisaria mesmo de um Mercedes. Voltei do quintal mais animado. Minha doce e atenciosa esposa – uma mulher boa, porque é, entre vários atributos, uma boa lutadora – passa álcool no telefone. Puxa vida... Chuveiro, ferrovia, telefone... este computador aqui... tudo isto advém do tal capitalismo industrial. Talvez eu ame o capitalismo mais do que presuma. Esse amor pode trazer na bagagem toda essa minha carga de ódio. Amor e ódio são irmãos em luta. Quem afinal não gosta disso tudo que nos rodeia? Quem não gosta da TV? Bobagem. Todos gostam, ainda que alguns não admitam ou não saibam. E todos gostam da idéia do grande e delicioso bolo – aquele quase mítico bolo que deve crescer pra depois ser distribuído. Eu queria apenas que o bolo fosse mais igualitariamente dividido. Eu queria uma fatia maior para mim e os meus. Uma fatia mais justa e mais irmã para todos. Mas, enquanto o bolo não chega... Vamos trabalhando e vivendo o prazer das “pequenas coisas”. E, pieguice ou não, o sol nasce pra todos, sim. Abrir a janela e ver a luz do sol é, na verdade, abrir a felicidade. E nada contra a minha querida Coca-cola. Até porque não posso contra ela.
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