Fiasco de Cavaradossi

Fiasco de Cavaradossi

O teatro de ópera exercia um fascínio extraordinário sobre os amantes da música; aprendemos cedo, que se podia ir à ópera, se soubéssemos bem todas as partes, para puxar os aplausos nas horas certas. O orientador era um senhor de quase 90 anos, cabeça branca e que fazia testes com os candidatos; as cadeiras eram cuidadosamente colocadas, de maneira que, pudéssemos distribuir as palmas; também se gritava bis, exigindo a volta dos cantores. Aquilo era uma maravilha! Não perdia temporadas nacionais ou estrangeiras, estourando as mãos de tanto bater palmas e, lhes confesso, a maioria das vezes, com todo entusiasmo de quem gostava de óperas. Nas temporadas, fossem nacionais ou estrangeiras, eram fatalmente programadas a Cavalleria Rusticana e os Palhaços; tinham alguma afinidade, embora a Cavalleria fosse Mascagni e I Pagliacci de Leoncavallo. Sucediam-se os grandes cantores, num teatro que era uma maravilha, embora os bailes de carnaval fizessem tudo para destruí-lo. Ficavamos alucinados, quando Renata Tebaldi era a diva; simplesmente extraordinário, uma cantora cantar tanto num palco, abrindo a voz, superando até gravações em discos, antes da época CD. Muitas vezes, eramos vencidos pela emoção ouvindo aquelas vozes maravilhosas. Certa ocasião, o citado senhor não me entregou a senha da claque, para uma das mais importantes récitas; não lembro qual; sentei no meio-fio triste como se fosse uma criança; pude acrescentar aquele episódio, à gama de tantos outros, que fizeram de minha adolescência uma sucessão de pequenos desgostos, sem contar os amores não correspondidos, pouco correspondidos ou correspondidos demais! Na temporada de 1951, fiquei na expectativa da apresentação de Giacinto Prandelli, de quem falavam maravilhas. Foi um erro; Prandelli não cantava nada, e foi agraciado com uma estrepitosa vaia na Recondita Armonia; os organizadores da temporada tiveram de trazer um cantor às pressas - Gianni Poggi. Pude assisti-lo defendendo o papel de Cavaradossi, junto à Renata Tebaldi, então numa forma esplendorosa. Poggi cantava muito, não desafinava e agradou plenamente. Tebaldi no papel de Tosca se embaralhou na cauda do vestido e quase vai ao chão, numa daquelas rodadas em cena; não cantou o Vissi D'arte voltada para o público e se apertava como se a voz não quisesse sair. Assisti muitas vezes a Boemia com elenco nacional muito bom, mas nunca com Tebaldi. Em Paris, pude assistir La Bohème com Barbara Hendricks fazendo uma admirável Mimi. Num primeiro de maio, Barreto Pinto, Ministro de Educação do tempo de Getulio, promoveu uma récita de Aida com Alfredo Colósimo e Angelita Cosmos; o público não entendia e riu, estrepitosamente, com a entrada da escrava Aida, obrigando interrupção da cena; dai, houve uma coisa inédita - Barreto Pinto veio ao palco e protestou - o Governo procurava dar cultura ao povo e ele respondia com grosserias contra artistas consagrados; a vaia foi mais estrepitosa, mas, mesmo assim, cantaram até o fim; de passagem, acredito que a famosa ária do tenor - Celeste Aida - foi interpretada por Colósimo de uma maneira inexcedível, como jamais ouvira pelo próprio Colósimo. Vale o registro, quase histórico. Barreto Pinto foi cassado anos depois pela Câmara dos deputados por falta de decoro, por ter sido fotografado em reportagem da Revista O Cruzeiro em cuecas.